Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Fundos galegos de música para guitarra (2)

Isabel Rei Samartim
viernes, 9 de abril de 2021
 Cartel de Canuto Berea y Cia © by Dominio Público Cartel de Canuto Berea y Cia © by Dominio Público
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Na primeira parte deste artigo apresentei brevemente os fundos galegos para guitarra tratados na tese de doutoramento A guitarra na Galiza (2020) correspondentes ao último terço do século XVIII e a primeira parte do século XIX. Agora continuo a relação dos fundos elaborados na segunda metade do século XIX na Galiza. 

Sendo todo esse século uma época convulsa, os seus efeitos sobre a evolução musical, os agrupamentos, ensino e intérpretes são diferentes segundo se vejam as primeiras ou as últimas décadas. Se antes predominavam os rigodões, as contradanças, as sonatas em oposição às cantatas e pequenos temas com variações, agora são protagonistas as valsas, as mazurcas, as polcas e as obras de grande formato. 

Pieza enlazada

Também está na moda a recuperação de antigas edições e, com elas, o início das reedições de música para guitarra. As coleções particulares continuam a ser feitas por pessoas amadoras, mesmo que as peças conservadas sejam cada vez mais virtuosísticas e de feitura profissional.

A segunda metade do século XIX é um período revolucionário na Europa, e assim é também na Galiza. Em 1846 tinha acontecido a última batalha da primeira metade do século, o levantamento independentista do Coronel Solis. Depois daquilo, documentos históricos ligados à guitarra, como o dos Valladares (Ferreirós, 2018) e o de Murguia (1886), testemunham vários anos de fomes continuadas. 

Fundo Pintos

Factos estes que não podemos deixar de relacionar, na nossa visão histórica, e tomar em consideração para entender o Rexurdimento, ou ressurgimento da consciência galega encabeçada pelas elites literárias. Em 1853 publica-se A gaita galega, livro manifestamente galeguista de cujo autor, João Manuel Pintos Villar, que era violinista e guitarrista, conservamos uma guitarra original além de alguma partitura do seu tempo. Pintos Villar foi o petrúcio duma família ilustrada da Ponte Vedra que entesourou o fundo musical e guitarrístico mais importante dessa época. 

Este fundo seria alimentado pelo arquiteto, maçom, amante de Beethoven e guitarrista Javier Pintos Fonseca (1869-1935). O seu legado, em parte conservado até há pouco tempo na casa familiar e agora já no Museu da Ponte Vedra, consta de um número indeterminado de música para diversos instrumentos, entre os que há umas 130 obras para guitarra. Trata-se dum volume de informação semelhante ao dos Valladares na primeira metade do século, com obras de diversa procedência e importância para a história da guitarra galega. 

Além disso, no fundo Pintos Fonseca acham-se duas guitarras originais do século XIX, uma da primeira metade e outra da segunda, que pertencem a diferentes gerações da família e que trataremos em capítulo à parte.

No arquivo Canuto Berea

Um outro fundo de música para guitarra, de que já temos falado no artigo anterior, é o do Arquivo Canuto Berea, que nesta segunda metade do século apresenta menos obras que anteriormente. Deve ter-se em conta que esta coleção de música está feita do ponto de vista comercial, pois as três gerações de Canuto Berea, pai, filho e neto, levavam o armazém de música mais famoso e longevo da Corunha. 

Chama à atenção a quantidade de música para guitarra das décadas de 1830-50, em especial o número de cópias manuscritas que ficaram sem vender, e também chama à atenção a pouca quantidade de obras que aparecem na segunda parte do século. 

O método para guitarra e bandurra de Bañares evidencia a proximidade entre os instrumentos das orquestras de plectro. © 2021 by Isabel Rei Samartin / Fundo Local de Música de Rianjo.O método para guitarra e bandurra de Bañares evidencia a proximidade entre os instrumentos das orquestras de plectro. © 2021 by Isabel Rei Samartin / Fundo Local de Música de Rianjo.

O primeiro parece indicar uma alta demanda de música para guitarra, acorde com o período histórico, que provocava um elevado volume de cópias manuscritas, e o segundo, pode significar que a venda de originais era boa, acompanhando o boom das orquestras de cordofones no último terço do século. 

Estas orquestras, que serão tratadas em próximos artigos, provocaram o surgimento de guitarristas amadores e profissionais, serviram como aprendizagem orquestral aos e às regentes galegas, e impulsaram a criação de música galega nas vilas e cidades, na costa e no interior da Galiza. Visto este panorama, a diminuição do número de obras resgatadas das estantes dos Canuto Berea pode ver-se como um sintoma do sucesso de vendas da música para guitarra no fim do século.

Fundo antigo de Jesus Ínsua Yanes

Antigamente, os correios postais que chegavam do interior da Península ao Norte da Galiza passavam pela Carteria de Pórcia, em Návia (Astúrias). O carimbo da passagem por Pórcia acha-se em quase todas as obras que compõem o fundo antigo do guitarrista ortegano Jesus Ínsua Yanes (1933-1994). Digo o fundo antigo porque Ínsua Yanes conservou outro fundo guitarrístico da sua própria época. 

Barcarola da ópera de Ricci arranjada por López, edição das décadas centrais do séc. XIX. © 2021 by Isabel Rei Samartim.Barcarola da ópera de Ricci arranjada por López, edição das décadas centrais do séc. XIX. © 2021 by Isabel Rei Samartim.

O fundo antigo ao que agora faço referência é uma coleção de dezanove obras publicadas nos meados do século XIX, que chegaram até Ínsua Yanes por herança e ainda se conservam na biblioteca particular da família graças à filha, Margarita Ínsua Cal. Segundo a filha lembra, o pai herdou as partituras do tio e padre José Maria Yanez Fraga, pároco de Espasante, também guitarrista. Porém, as peças do fundo que têm datação indicam que as obras teriam sido publicadas durante a infância do padre Yanez, ou talvez nem teria nascido. 

Parece, portanto, que o padre e guitarrista também teria recebido essa coleção de música dalgum antepassado seu, fosse da família civil ou da sua família eclesiástica, pois Yanez estudou no Seminário de Mondonhedo num momento histórico, o final do século XIX e começo do XX, em que a música para guitarra fervilhava nessa vila galega. O conjunto contém música de carácter virtuosístico de autores espanhóis, italianos, alemães e catalães bem conhecidos na época. Mais do que originalidade nas obras, pois estão todas catalogadas e fazem parte do âmbito musicológico, este fundo contribui à história da guitarra galega com um elemento fundamental, que é o conhecimento guitarrístico de alto nível, com obras de edição europeia, em vilas como Mondonhedo e Ortigueira.

Fundo Local de Música de Rianjo

Poucas vezes uma vila pequena, ou a sua instituição local, se dá ao trabalho de recuperar e conservar de modo público e oficial o seu património artístico. Estes labores costumam deixar-se às grandes cidades em que os patrocínios parecem maiores e mais fáceis de conseguir, de modo que na vila pequena, ou o património continua nas mãos dos particulares, ou este desaparece para integrar as coleções da cidade mais próxima. Porém, na vila de Rianjo existe um Fundo Local de Música patrocinado pela Câmara Municipal desde 2015, dedicado à conservação, estudo e análise dos fundos musicais das famílias rianjeiras (Orjais, 2015). 

Para quem não saiba, Rianjo é uma fonte inesgotável de arte galega, sobretudo, na área das letras, da pintura e da música. Vejam-se as obras de Manoel António, além de poeta também violinista, de Daniel R. Castelão, além de exímio pintor e influente político, também guitarrista, ou Rafael Dieste, além de escritor, também pianista, como a sua sobrinha, Mireia Dieste, virtuosa do piano. As coleções que conformam o FLMR (Fundo Local de Música de Rianjo) são principalmente as das famílias de José Pérez González (1901-1941) e de José R. Nine Piñeiro (1895-1936), havendo em todas elas partituras de música para guitarra. 

Fragmento dos arranjos de Agustín Gómez em Buenos Aires. © 2021 by Isabel Rei Samartim / Fundo Local de Música de Rianjo.Fragmento dos arranjos de Agustín Gómez em Buenos Aires. © 2021 by Isabel Rei Samartim / Fundo Local de Música de Rianjo.

Entre os autores desta música está o compositor galego Felipe Paz Carbajal, de que o FLMR conserva várias obras para orquestra de cordofones. Também há música arranjada para guitarra de Verdi, Strauss II, López Almagro e Sánchez de Fuentes, além dos guitarristas F. Carulli, M. Peñalba, A. García, A. Rubira, entre outros. Destaca pela sua originalidade um deles, Agustín Gómez, de quem unicamente conhecemos os arranjos manuscritos que figuram na coleção, dedicados em Buenos Aires entre 1882 e 1883 a Andrés Pérez, provável tio de Manoel António que teria emigrado à Argentina.

Até aqui a breve apresentação dos fundos guitarrísticos galegos dos séculos XVIII e XIX. Todas as informações serão ampliadas em próximos artigos que se dedicarão a expor de modo mais concreto a descrição, o contexto e a relevância de cada uma destas fontes. Por enquanto, espero ter dado uma ideia da quantidade de património musical que desconhecíamos por não ter reparado na Galiza como país guitarrístico. 

Esta falta de consciência musical sobre a guitarra encontra a sua explicação nos documentos galegos e também será objeto dum artigo específico. Muitas vezes pergunto-me se não haverá, ainda escondidos, outros tantos fundos à espera de que mais guitarristas indomáveis queiram saber deles para explicar, talvez, o nosso próprio contexto, a história galega da guitarra.

Bibliografía

 
Ferreirós Espinosa, C. (2018). O legado dos Valladares de Vilancosta. Santiago de Compostela: Centro Ramón Piñeiro.
Murguía, M. M. (1886). Los Precursores. Corunha: Latorre e Martinez.
Orjais, J. L. d. P. (2015). Fondo Local de Música do Concello de Rianxo. Guadalupe. Rianxo. 11-18 setembro 2015. Rianjo: Associação "A Moreniña".
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
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