Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Cambra, Benavides e o pirata Juan March

Isabel Rei Samartim
jueves, 17 de junio de 2021
Etiqueta de Domínguez Cambra, na bonaerense Avenida Entre Ríos, 177. © 2121 by Isabel Rei Samartim Etiqueta de Domínguez Cambra, na bonaerense Avenida Entre Ríos, 177. © 2121 by Isabel Rei Samartim
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Muchos cientos de miles de años han debido transcurrir para que un ser vivo naciera sobre la tierra, y algunos menos antes de que el hombre adoptara la postura erguida. ¿Pero cuántos años habrá necesitado la humanidad para producir un pirata?

el último pirata del mediterráneo. © 1976 by Ediciones Roca.el último pirata del mediterráneo. © 1976 by Ediciones Roca.

Desse modo começa a primeira parte do livro de Manuel Domínguez Benavides, El último pirata del Mediterráneo, publicado em Barcelona, em 1934. Uma biografia novelada do financeiro malhorquino Juan March, que antes de colaborar com os golpistas da época dedicou-se à atividade do contrabando entre as costas mediterrânicas da África e da Europa, conseguindo reunir uma notável fortuna. 

Leio a terceira das edições publicadas por Sargadelos (Ediciós do Castro), que no prólogo de Carlos Fernández Santander, intitulado “Manuel D. Benavides, otro gallego olvidado”, informa da indignação de Juan March pela publicação desta biografia novelada, de modo que o banqueiro iniciou a compra massiva de exemplares para a sua destruição.

Domínguez Benavides

Manuel Domínguez Benavides nasceu em Ponte Areias, em 19 de abril de 1895. Era, antes de mais, um narrador excepcional em castelhano. Com 26 anos de idade ganhou o prémio literário ‘Gregorio Pueyo’ com um romance que publicou em 1922. Nessa década publicará mais dous romances e uma obra teatral. Trabalhou na empresa viguesa Fraga como tradutor de obras para produção de filmes, foi diretor do semanário Estampa e continuou publicando romances durante a II República espanhola. 

Guitarra de Domínguez Cambra, década de 1920. © by Guitarrería de Buenos Aires.Guitarra de Domínguez Cambra, década de 1920. © by Guitarrería de Buenos Aires.

As suas ideias políticas eram socialistas e democráticas, pelo que ao iniciar-se a guerra depois do golpe falido dos franquistas, participou no exército republicano como comissário político da Marinha. Nesses anos não deixa de escrever e publicar. 

Segundo o seu prologuista, Benavides considerava Catalunha como a mais importante das forças republicanas. Ao perder a guerra, o escritor exilia-se no México, onde morre em 19 de outubro de 1947.

Matilde Domínguez Benavides, irmã de Manuel, casou com o prestigioso médico compostelano, José Puente Castro. O irmão José era jornalista e também republicano, trabalhou com Manuel como redator na revista Estampa e exiliou-se na Venezuela. 

Entrada para Domínguez Cambra no dicionário de Vannes, p. 88. © 2003 by Les Amis de la Musique.Entrada para Domínguez Cambra no dicionário de Vannes, p. 88. © 2003 by Les Amis de la Musique.

Porém, o exílio e a emigração não eram desconhecidas na família dos Domínguez, e já os primos Manuel e Emilio Domínguez Cambra, também de Ponte Areias, tinham emigrado décadas antes para a Argentina.

Domínguez Cambra

Cabeça da guitarra de Domínguez Cambra, década de 1920. © by Guitarrería de Buenos Aires.Cabeça da guitarra de Domínguez Cambra, década de 1920. © by Guitarrería de Buenos Aires.

Manuel Domínguez Cambra (Moreira, Ponte Areias, 1873 – Buenos Aires, 1929) foi um violeiro galego que aprendeu o ofício na Casa Núñez. Chegou em Buenos Aires em 1887, segundo relata Prat, que o conheceu e tratou. Dele diz Prat que era duma família “distinguida”, o que na altura indicava um nível de educação superior à média, cousa que também se observa nos primos Benavides. Ao parecer, as conversas de Cambra eram “amenas, profundas e instrutivas” (Prat, 1934, p. 366). 

Começou no ofício de ebanista e depois entrou na oficina de Núñez como aprendiz de luthier e os seus mestres foram Núñez e Pablo López. Durante o pouco tempo que viveu, Cambra construiu guitarras admiradas por guitarristas como Jiménez Manjón e o próprio Domingo Prat, que destacavam pela singeleza nas formas e beleza sonora.

Méndez Cancio

Entrada para Méndez Cancio no dicionário de Vannes, p. 237. © 2003 by Les Amis de la Musique.Entrada para Méndez Cancio no dicionário de Vannes, p. 237. © 2003 by Les Amis de la Musique.

Por último, e para acabar esta série de galegos bonaerenses e violeiros, está Celestino Méndez Cancio, nascido em Sabariz (Astúrias) o 17 de março de 1883 e parente, informa Prat, de Francisco Núñez. Cancio chegou a Buenos Aires em 1898, entrou a aprender o ofício de violeiro com Núñez e passou quinze anos trabalhando com ele antes de se estabelecer pela sua conta na capital argentina. 

Como vemos, a história de todos estes violeiros tem paralelismos evidentes. Eles faziam parte de famílias que podiam emigrar, porque para emigrar não se podia ser pobre de tudo, havia que ter algo. Eles tinham entre 15 ou 16 anos de idade quando as suas famílias se dispuseram a viajar à Argentina. Instalaram-se todos em Buenos Aires e dedicaram-se a ensinar e aprender dos seus compatriotas, mas integrando-se no país de acolhida, como é próprio das gentes galegas.

Pieza enlazada

Esta pequena plêiade de violeiros galegos juntou-se ao redor do próspero Francisco Núñez, em Buenos Aires, aonde emigraram na procura duma vida digna, da aprendizagem dum ofício maravilhoso, com a intenção de poder desenvolver as suas habilidades e a sua vida. Algo que não era possível na Galiza de final de século. 

Não deixa de ser paradoxal que, simultaneamente a este sangramento artístico, se desenvolva um dos maiores instrumentos de propaganda da época, como foi a ideia da guitarra española. Estes galegos, que procuravam fora da Espanha melhores condições de vida, acharam em Buenos Aires uma guitarra argentina em pleno crescimento, e a ela contribuíram com a sua arte construtiva, sendo apreciados pelos guitarristas do país.

Ficha com descrição e preço duma guitarra de Domínguez Cambra. © by Galerie des Luthiers.Ficha com descrição e preço duma guitarra de Domínguez Cambra. © by Galerie des Luthiers.

Mais para a frente virão um ou vários artigos a explicar o fenómeno da construção ideológica da guitarra española, um acontecimento de que não se têm tirado os devidos ensinamentos. Uma ideia que se detecta nos meios galegos no último terço do século XIX, que afetou à imagem do instrumento na Galiza e foi evoluindo e reforçando-se no século XX, especialmente na época da ditadura, momento triunfal para os Juan March. 

Mas também depois dela, quando a indústria discográfica e o marketing empresarial em desenvolvimento conferem ao sintagma Spanish guitar a categoria de marca. A progressiva folclorização da música durante o franquismo impediu a evolução livre do espírito musical e guitarrístico galego, que ainda resistia tocando uma e mil vezes o repertório romântico. 

A Alvorada, o Hino Galego, Os teus olhos, a Negra sombra eram os grandes êxitos do XIX que povoavam os programas das orquestras de guitarras durante as décadas de 1940, 50 e 60 sem que aparecessem os Veigas, os Montes e os Chanés modernos. A sensação é de termos sido historicamente roubados por piratas. 

Cumpre uma análise do que significou o esquecimento da guitarra como instrumento galego, à par do que significou o folclore franquista para o atraso na educação, formação e inovação musical galega.

Bibliografia
Domínguez Benavides, M. (2003). El último pirata del Mediterráneo. Sada: Ediciós do Castro. Publicado junto com o romance La escuadra la mandan los cabos, do mesmo autor. Ambas as reproduções dos originais publicados no México em 1976.
Galerie des Luthiers: Guitarra de Domínguez Cambra, 1923
Guitarrería de Buenos Aires: Guitarra de Domínguez Cambra, década de 1920.
Prat, D. (1934). Diccionario biográfico, bibliográfico, histórico, crítico de guitarras, guitarristas, guitarreros... Buenos Aires: Romero y Fernández. Reedição: Prat, D. (1986). A biographical, bibliographical, historical, critical Dictionary of guitars, guitarists, guitar-makers... With an introduction by Matanya Ophee. Columbus: Editions Orphée.
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela. 
Romanillos Vega, J. L. e Harris Winspear, M. (2002). The vihuela de mano and the spanish guitar. A dictionary of the makers of plucked and bowed musical instruments of Spain (1200-2002)Guadalajara: Sanguino.
Vannes, R. (2003). Dictionnaire Universel des Luthiers, (3ª ed.). Bélgica: Les Amis de la Musique.
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