Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

A virtuosa bandurrista Miss Zaida na Galiza (1884-1902) (1)

Isabel Rei Samartim
jueves, 15 de julio de 2021
O odor das romãs © 1899 by Zaida Ben Yusuf O odor das romãs © 1899 by Zaida Ben Yusuf
0,0015704

As práticas performativas realizadas por mulheres sempre foram controladas no mundo hetero-patriarcal. Ali onde os pressupostos masculinos são mais fortes, as mulheres artistas eram ignoradas pela História da Arte, negligenciadas do ponto de vista da qualidade artística, e silenciadas, se a qualidade era de alto nível. Ao fio dos últimos e trágicos acontecimentos na Corunha, é devido mencionar que o mundo Trans tem-se refugiado, em todas as épocas, na interpretação artística de personagens femininas, recebendo igual tratamento por parte da História e do Mundo do Espetáculo. Tudo o referente às mulheres neste âmbito é aplicável às pessoas transgênero que dedicaram a sua vida aos palcos.

Na etapa final do século XIX europeu, quando o dinamismo artístico cénico atinge números recorde na Europa, também o número de mulheres artistas aumenta e, com elas, o vazio histórico posterior. Elas e as suas obras são vistas como passageiras, como objetos substituíveis, e não como obras de arte e artistas imanentes e perduráveis. São rapidamente esquecidas, o uso de pseudónimos é algo habitual, e por mais virtuosas que forem, elas não podem fazer carreira sozinhas, nem lhes resulta fácil combinar a carreira artística com a vida familiar, amorosa ou com qualquer outro tipo de cuidados.

Neste artigo apresentamos umas pinceladas da passagem pela Galiza da música logronhesa Julia Díaz, conhecida por Miss Zaida, que simbolizou entre nós a ousadia da mulher cénica e a hegemonia do seu talento, uma vida artística que teve de se realizar entre dificuldades e estereótipos.

Célebre bandurrista

Notícia da chegada à Galiza da célebre bandurrista no «El Correo Gallego» de 1884, 26 de novembro. © 2021 by Isabel Rei Samartim.Notícia da chegada à Galiza da célebre bandurrista no «El Correo Gallego» de 1884, 26 de novembro. © 2021 by Isabel Rei Samartim.

Possivelmente de gira peninsular, chega ao Ferrol em 1884 a bandurrista apresentada como Venancia Dicenit, acompanhada do guitarrista chamado Mr. Jacobet, que ao parecer são matrimónio, com o propósito de tocar uma série de concertos no Café Méndez Núñez (El Correo Gallego, 1884a e 1884b). A notícia indica que, além da música, os artistas desenvolvem números "de dislocación y contorsión completamente nuevos". 

Este relacionamento da atividade musical com a malabarista não é estranho nas últimas décadas do século, momento em que os espetáculos de variedades incluem todo o tipo de atividades cuja realização causa assombro, tais como a magia, a ginástica e as atividades circenses. Assim, pois, devemos entender que o duo de bandurra e guitarra estava formado por pessoas ligadas ao mundo do espetáculo. E também que, por esse motivo, os seus nomes pudessem ser pseudónimos. O estado civil com que se apresentavam podia ser também falso, um reflexo do controle patriarcal sobre a mulher, que não deveria aparecer como virtuosa e solteira, especialmente ao ser acompanhada por um homem.

Miss Zaida

De novo, em 1887, aparece na imprensa galega esta fantástica bandurrista, cuja destreza musical chama à atenção em todos os locais onde atua, agora apresentando-se como Madame Zaid (El Eco de Galicia, 1887). Observe-se que Zaid é a inversão do apelido Díaz. Posteriormente, adoptará já a forma ‘Miss Zaida’. 

Zaida era um nome bem conhecido no século XIX por fazer parte de várias obras literárias, representadas e espalhadas em teatros e jornais. Desse modo temos a relação do rei galego Afonso VI com a princesa árabe Zaida, na obra teatral de Mariano J. Larra La conquista de Madrid. A mesma Zaida aparece como facto histórico no Manual de Instrucción Primaria, Elemental y Superior de Joaquín Avendaño (1846), dirigido à formação do professorado nas Escolas Normais. A lenda árabe entre o imperador turco Solimão e a escrava Zaida, evocada por Ribot Fonseré (1813-1871) e publicada em 1849. E mais elementos literários e musicais, como a ópera de W. A. Mozart, Zaide K. 344, com libreto de Johann Andreas Schachtner, escrita em 1779-80 mas estreada em 1866, baseada também na Zaida de Solimão (Rushton, 1992).

Auto-retrato da fotógrafa Zaida Ben Yusuf (Nova Iorque, 1901). © Dominio público.Auto-retrato da fotógrafa Zaida Ben Yusuf (Nova Iorque, 1901). © Dominio público.

Para mais abundância, a fotógrafa Zaida Ben-Yusuf (1869-1933), de naturalidade alemã e argelina, nascida na Inglaterra mas estabelecida nos Estados Unidos da América, começava a reconhecer-se como artista na mesma época que a bandurrista. 

Por tudo isto, parece muito possível que o nome de Miss Zaida fosse escolhido como pseudónimo pela sua ressonância artística e literária, a jeito de atração publicitária e, ao mesmo tempo, de elevação artística e de irmandade feminista, ou sororidade. Neste artigo reproduzimos algumas das fotografias e autorretratos de Zaida Ben-Yusuf, como orientação para imaginar a mulher artista de final de século.

Quem era a virtuosa bandurrista Miss Zaida?

A investigadora Inmaculada Benito (2003) informa que Miss Zaida era uma bandurrista de Logronho, atual capital da Comunidade Autónoma de La Rioja, no Reino da Espanha, e que o verdadeiro nome dela era Julia Díaz (Zaid). No seu trabalho sobre a vida nos Cafés logronheses na última década do século, Benito (2015) menciona a família Díaz, que tem uma companhia teatral, e também um tal Eduardo ou Enrique Díaz, que se dedica ao espetáculo circense.

Sem termos certeza documental, pelo tipo de profissões mencionadas não seria estranho que a Venancia Dicenit que aparece em 1884 no Ferrol, virtuosa da bandurra e contorcionista, mais tarde conhecida por Miss Zaida, pudesse ser a Julia Díaz de Logronho. Na imprensa galega ela é também nomeada como “Julia Zaida”. O tal Eduardo ou Enrique Díaz, do mundo circense, poderia fazer parte da família Díaz dedicada ao teatro, e cabe a todos eles a hipótese de serem familiares de Miss Zaida.

De setembro a dezembro de 1887, Miss Zaida e Mr. Jacobet tocam muito nos cafés do Ferrol, Compostela, Ponte Vedra e Lugo. Em ocasiões continuam a colaborar com o mundo do espetáculo, em associação com o prestidigitador César P. Altadill (El Eco de Galicia, 1887). O sucesso da virtuosa percebe-se nas resenhas e crónicas da imprensa, que para a definir usam adjetivos como: inteligente, eminente, notável e célebre.

Acompanhantes de Miss Zaida

Identificada pela imprensa como norte-americana, possivelmente confundida com a famosa fotógrafa Zaida Ben-Yusuf, reaparece Miss Zaida em 1893 nos jornais galegos, a tocar em colaboração com uma companhia de teatro em que trabalhavam os guitarristas flamencos Manuel López e Joaquín Rodríguez (Ocampo, 2001). Agora a atividade circense parece desaparecer das suas atuações. Estes comentários publicados na Gaceta de Galicia, sobre o recital no Café Méndez Núñez compostelano, são de janeiro de 1894:

Todo cuanto podamos decir de dicha artista es poco, pues todos los números que interpretó en la bandurria lo hizo con muchísima precisión y demostró poseer una ejecución notabilísima, sobre todo en la sinfonía de Guillermo Tell, que cuando terminó fué muy aplaudida por la concurrencia que invadía el citado café.
Es verdaderamente digna de oírse la mencionada artista, pues cuenta con un repertorio numerosísimo en el que figuran excelentes números musicales.

A atriz estadunidense Elsie Leslie fotografada por Miss Zaida Ben Yusuf em 1899. © Dominio público.A atriz estadunidense Elsie Leslie fotografada por Miss Zaida Ben Yusuf em 1899. © Dominio público.

No seguinte mês de fevereiro Miss Zaida acompanha-se do pianista ferrolano Eduardo Braña Lérida (El Correo Gallego, 1894; Rodríguez, 2010). Outros acompanhantes desse tempo são o guitarrista habitual Sr. Jacobet e, ocasionalmente, o pianista Ricardo Courtier, da família Courtier de músicos galegos.

A pesar do sucesso e reconhecimento da artista, cujas interpretações provocam assombro, admiração e prazer, a imprensa também recolhe comentários e adjetivos que evocam o receio patriarcal perante o brilho feminino. Assim, um tal Pio L. Cuiñas* chama a ilustre bandurrista de ‘barbiana’ (desenrascada, sem vergonha) para, a seguir, negar-lhe o título de miss, e atribuir erradamente a sua origem a Chiclana (Cádiz) onde “la conocen por la Trapos”. Em Cádiz havia outra mulher conhecida por esse sobrenome, que tratavam de prostituta. O exímio narrador acaba a sua alocução com um “Fíense ustedes ahora de las mises... en escena” (é escusada a tradução). A piada final é que os jornais que publicam estas opiniões chamam-se Nuevo Mundo (1896) e Galicia moderna (1897).

No próximo artigo continua a relação de recitais, acompanhantes, o encontro com o mestre Montes, o repertório, a colaboração com o cinematógrafo, a ocasional associação do Trío España, a menina Carmen, e o último ano de concertos da virtuosa Miss Zaida na Galiza.

Bibliografia

Avendaño, J. (1846). Manual completo de instrucción primaria, elemental y superior para uso de los aspirantes á Maestros y especialmente a los alumnos de las escuelas normales de provincia. Tomo III. Madrid: José González y Compañía.
Benito Argáiz, I. (2003). La vida escénica en Logroño. Tese de doutoramento. UNED, Logronho.
Benito Argáiz, I. (2015). La “vida” en los cafés logroñeses entre 1890 y 1900. Berceo. Revista riojana de ciencias sociales y humanidades, 169(55-82).
El Correo Gallego (1884a). Ferrol: 26 de novembro, p. 2.
El Correo Gallego (1884b). Ferrol: 27 de novembro, p. 2.
El Correo Gallego (1894). Desde la butaca. Ferrol: 23 de fevereiro, p. 2.
El Eco de Galicia (1887). Lugo: 9 de setembro, p. 3.
El Regional (1893). Lugo: 15 de novembro, p. 3.
Gaceta de Galicia (1894). Compostela: 10 de janeiro, p. 3.
Galicia Moderna. Revista quincenal ilustrada (1897). Así anda el mundo. Ponte Vedra: 15 de junho, p. 10.
Hindson, C. (2013). Female Performance Practice on the Fin-de-Siecle Popular Stage of London and Paris: Experiment and Advertisement. Manchester: Manchester University Press.
Larra, M. J. e Gaztambide, J. (1874). La conquista de Madrid. Madrid: Alonso Gullón.
Nuevo Mundo (1896). Lance de Honor. Madrid: 23 de abril, p. 12.
Ocampo Vigo, E. (2001). Las representaciones escénicas en Ferrol: 1879-1915, cap. 4. Madrid: UNED.
Orjais, J. L. d. P. (2015). Where's Miss Zaida. Blog Ilha de Orjais: 27 de abril.
Ribot Fonseré, A. (1849). Solimán y Zaida o El precio de una venganza. Madrid: Gaspar y Roig.
Rodríguez de los Ríos, J. J. (2010). Los Braña, músicos y su vinculación con Neda. Revista de Neda. Anuario Cultural do Concello de Neda, 12 (23-31). 
Rushton, J. (1992). Zaide. Em Sadie, S. (Ed.), The New Grove Dictionary of Opera, 4, (rev. 1997, 2001). Londres: Macmillan Reference Limited.

Notas

Pío Lino Cuíñas Pereira (Vigo 1851-1927) foi escritor e letrista das duas melodias galegas de Reveriano Soutullo («Veira d'o mar» e «Primadeira») bem como do «Himno a Vigo» do mesmo compositor. Escreveu também sob os seudónimos El huérfano de Bembrive e Ambrosio. Informação de Alejo Amoedo Portela.

Comentarios
Para escribir un comentario debes identificarte o registrarte.