Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaHenrique Lens Viera e a guitarra
Isabel Rei Samartim
A pesquisa sobre a guitarra na Galiza mostrou algumas informações relativas a músicos galegos não guitarristas que se relacionaram com as pessoas dedicadas à guitarra, ou em círculos onde os instrumentos de plectro estavam sempre presentes. Este é o caso do pianista Henrique
Lens e o virtuoso João Parga
O virtuoso ferrolano João hospedou-se no Hotel da Carrilana quando a sua vinda a Compostela. Deu o seu último e aplaudido concerto na cidade em 14 de dezembro de 1889. Dias antes, em dia 10, os amigos músicos ofereceram outro concerto com jantar na sua honra, a modo de despedida.
No local da rua do Vilar onde tinha estado o Café del Siglo, tocou o septeto formado pelo quarteto habitual de José
Lens na escola de Manuel López Navalón
Henrique Lens foi professor na escola para crianças surdas e mudas cujo diretor era o intelectual, republicano e inventor, de origem castelhana, Manuel López Navalón, e que formou tantos músicos galegos. Lens entrou como professor em 1890 por falecimento de Ramón Bugueiro (Freitas, 2020, p. 77) e ali trabalhou e conviveu com a orquestra de plectro que ofereceu recitais e ganhou prémios por toda a Galiza (Rei-Samartim, 2020, p. 398). Lens deixa a escola em 1908, quando entra como professor auxiliar o guitarrista e ex-aluno do centro, Luis Agote Aguiar.
Lens e o violinista, compositor e regente de orquestas de plectro Álvaro Soto
No mesmo ano de 1889, junto com Álvaro Soto, Henrique Lens e Santiago Cimadevila, três irmãos ‘Curros’, José, Gerardo e Jesus, ganhavam o concurso na secção de música de câmara na Ponte Vedra com o sexteto (Canedo et al., 2014; Freitas, 2018, p. 172-177). Álvaro Soto, como dissemos no artigo dedicado às orquestras de plectro em Compostela, foi regente e compositor para este tipo de agrupamentos com guitarras e cordofones dedilhados. Como vemos, Lens Viera não podia ser alheio ao ambiente guitarrístico que existia em todas as cidades galegas, e que provinha da intensa atividade musical nas vilas grandes e pequenas.
Em Tui há registo de uma orquestra de guitarras e bandurras em 1891. O pianista Henrique Lens publicava na Gaceta de Galicia (1891) uma extensa resenha das festas patronais tudenses dedicadas a São Telmo, em que descrevia o recital realizado a noite do 25 de junho onde participaram duas bandas de música, o orfeão La Oliva de Vigo, o grupo de ocarinas de Valença, a orquestra de Tui e um conjunto de guitarras e bandurras. Nesse ano as festas patronais de Tui, em que se inseria o recital, foram uma comemoração do regionalismo galego e dos Jogos Florais com presença de Murguia, Brañas, Cabeza de León e Tarrío. No seu texto Lens destacava o discurso do padre Cerviño, realizado na catedral para o auditório presente:
Comenzó el Sr. Cerviño saludando a Galicia, elogiando á los hijos amantes que trabajaban por la redención de su patria, y declarando que el regionalismo estaba llamado a regenerar nuestras costumbres, á resucitar nuestro pasado glorioso, y á salvar nuestros mas caros intereses. Tuvo el Sr. Cerviño frases enérgicas y viriles, pintando con los mas vivos colores el amor á la patria y á la verdadera libertad de los pueblos. Dijo que la religión bendicía [sic] la idea salvadora que entrañaban los Juegos Florales, prólogo de grandes acontecimientos para Galicia, y que la religión contribuira siempre á la libertad y al progreso, en el sentido verdadero que estas ideas deben tener.
Soto coincidia mais tarde com Henrique Lens numa atuação benéfica no Teatro Principal (Gaceta de Galicia, 1893) em que dirigia as orquestras de arco e de plectro. Com esta última interpretou a abertura de A Flauta Mágica de Mozart. Lens acompanhava no piano as cantoras Francisca López, Carmen Ochoa e o baixo Luciano de la Riva, em duos de zarzuelas. Também atuaram a pianista Nemesia Courtier, que tocou um Rondó caprichoso, e o pianista Rafael Garcia que interpretou a obra de Lens, Serantellos Op. 25, com orquestra e coro.
Lens e La Liga Gallega
Fundada na Corunha em 1897 por Murguia, Lugris Freire, Carré Aldão e Salvador Golpe, La Liga Gallega foi um grupo político liberal e galeguista de pouco sucesso. Além de Murguia, outros presidentes do grupo foram o estradense Waldo Álvarez Ínsua e o betanceiro Salvador Cabeza de León. Foi nos tempos da presidência de Cabeza de León que a Liga organizou um evento de comemoração da música de João Montes, falecido no mês de junho de 1899. O evento, que se realizou no mês de novembro em Lugo, contava com a participação de vários membros da Liga em Compostela, Corunha e Lugo. Henrique Lens participou como pianista e como orador, com uma intervenção biográfica sobre Montes (La Idea Moderna, 1899).
Sem dúvida, e a teor dos eventos organizados mais para a frente em Compostela, Lens Viera era um dos colaboradores habituais nessa organização política que, pelas pessoas que a integravam, manifestou um desvio à direita não desejado pelos fundadores. Anos mais tarde, em 1916 Vilar Ponte e os fundadores da antiga Liga criavam as mais decididas e conscientes Irmandades da Fala.
Lens e o guitarrista limião Eulogio Gallego Martínez
Depois de acabar os quatro cursos de Teologia em Ourense, Eulogio Gallego matriculava-se no ano letivo 1902/03 no Seminário Conciliar de Compostela, para estudar quinto ano de Teologia e três cursos Direito Canônico. Foi neste período onde eclodiu a sua fama como intérprete. A sua atividade musical girava em torno do Círculo Católico de Obreros, associação religiosa em que a maior parte dos afiliados eram operários e artesãos, mulheres e homens com um ofício autónomo, ainda que na direção da entidade sempre havia pessoas das classes dominantes, da nobreza e do clero, unidas todas por uma vocação religiosa que parecia amalgamar a situação social, na altura governada por uma nova Restauração bourbónica. O cronista, mestre e membro do Círculo, José María Moar Fandiño, autor da maior parte das notícias sobre o nosso guitarrista, reconhecia com ironia crítica que os membros dessa entidade eram alcunhados de "partido manso de socialistas católicos" (Moar, 1903a). Outros grandes músicos galegos, como o mestre e compositor Manuel Valverde e o pianista Henrique Lens eram protagonistas habituais das veladas do Círculo.
No recital de Entrudo organizado em 22 de fevereiro de 1903 pelo Círculo de Compostela, atuou Eulogio Gallego, descrito pelo cronista José Maria Moar como "alumno teólogo del Seminario, tiene derecho a mil plácemes por su música de armónicos y la ejecución de la Marcha de Luis XVI". No mesmo recital intervieram o mestre Manuel Valverde dirigindo o orfeão e o grupo de plectro do Círculo, Henrique Lens ao piano, o barítono Muras e os poetas habituais do Círculo, José Santaló, Villelga e Vázquez Queipo.
Em 26 de fevereiro de 1903, a Gaceta de Galicia publicava uma extensa crónica de Juan San Emeterio de la Fuente, assinada em 24 de fevereiro sobre o evento anterior. O recital em honra do Papa realizou-se o domingo, dia 22 de fevereiro, às 18h30 na sede do Círculo Católico de Obreros sito na Rua Nova compostelana. Em plenos festejos do Entrudo o cronista referia-se ao recital do Círculo por estas palavras publicadas a várias colunas na capa da Gaceta:
Hermoso y grande, porque mientras las calles rebosaban de gente y una loca muchedumbre se agitaba nerviosamente de un lado para otro para contemplar embobada las ridículas mascaradas, un número crecidísimo de obreros se apartaban del bullicioso y frívolo mundo y buscaban solaz y recreo para sus almas y descanso para sus cuerpos, congregándose, animados de un mismo y noble deseo, para celebrar una velada literario musical y rendir un tributo de homenaje, de admiración, de respeto, de cariño, á la simpática figura del Vaticano, al amantísimo padre de los obreros, al soberano Pontífice León XIII, al venerable anciano, que cubierto de blancas vestiduras desempeña su apostolado de paz en la ciudad de los Césares y hacia el cual vuelven hoy los ojos todas las almas creyentes, todos los verdaderos hijos de la iglesia católica, apostólica, romana.
A oposição frontal do catolicismo face aos festejos populares pagãos ficava em evidência dando a razão àqueles críticos que achavam no Círculo uma espécie de escola de domesticação da classe operária compostelana. O cronista informava de que o maestro Henrique Lens tocou uma Marcha Húngara, entendemos que podia ser a de Hector Berlioz (A condenação de Fausto) arranjada para piano por Franz Liszt.
Especial interesse tem o orfeão e o grupo de plectro formados por operários membros do Círculo, que depois do trabalho se reuniam para formar essas agrupações musicais de amadores a aprenderem música graças às aulas de
Eulogio Gallego, distinguido guitarrista, tocou novamente a Marcha de Luis XVI e uma Malaguenha a petição do público "que ejecutó con la guitarra sobre las espaldas". As obras que precisavam acompanhamento de piano foram assistidas pelo mestre Lens. Houve também recital de poesia com os habituais Santaló, Villelga, Rey Gacio, García Vázquez Queipo e García Sanmillán que recitou umas redondilhas em galego e, a petição do público, o seu poema A Orfa. Era este, sem dúvida, liderado por Alfredo Brañas, o conjunto de pessoas que em Compostela levaram a Liga a posições políticas conservadoras.
O dia 11 de junho do mesmo ano de 1903 teria lugar o evento solene de final do ano letivo no Seminário com música e poesia na sede do Círculo Católico de Obreros (Moar, 1903b). Atuaram o maestro pianista Henrique Lens Viera; o seu discípulo Ángel Brage que tocou o Galop de Henri Herz, o barítono Sr.
O literário cronista José Maria Moar descreveria meses mais tarde, nesse ano de 1903, um outro recital de música e poesia organizado pelo Círculo, evento do qual dizia (Moar, 1903c): "Puede afirmarse de la velada de anteayer que fué regionalista". O motivo disto era que a maior parte das obras e poemas recitados eram de autores galegos, o que na altura e, por desgraça ainda na atualidade, era algo exótico mesmo para antigos membros da Liga. Atuou o orfeão do Círculo, dirigido por Valverde, que interpretou o Ave Maria de Prudencio Piñeiro e a Alborada de Pascual Veiga. O autor da crónica informa que recentemente dous galegos chegaram da Argentina para conhecer o mestre Valverde, autor de Ay, esperta, adourada Galicia...!. Também intervieram os pianistas Lens e Brage que entre outras obras para piano interpretaram Serantellos, de Lens Viera. Na guitarra, Eulogio Gallego colheitou, novamente, o sucesso habitual.
Conclusões
Henrique Lens Viera, pianista e compositor galego, enquanto morou na Galiza não foi alheio ao impulso que a guitarra e as orquestras de plectro experimentaram no último terço do século XIX e primeiro do XX. Conhecia e era conhecido por guitarristas e por colegas que dirigiam agrupamentos de cordofones dedilhados. Colaborou de modo habitual em recitais com estes grupos e solistas. Em definitivo, a guitarra não era para ele um instrumento alheio.
Algumas das pessoas mencionadas nestes eventos tiveram uma trajetória política conservadora muito ligada à Igreja entendida como atalaia de valores caducos e de classe, e não como instituição sem lucros entregada a ajudar aos necessitados.
Talvez esse ambiente conservador católico não fosse do agrado do virtuoso limião, Eulogio Gallego Martínez, de quem suspeitamos a saída para a Havana sem acabar os estudos no Seminário e o seu estabelecimento como professor de guitarra na ilha independente (Rei-Samartim, 2017).
Bibliografia
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Rei-Samartim, I. (2017). O guitarrista limião Eulogio Gallego Martínez (Ginzo de Límia, 02-09-1880 – ?). Blog Historia de Xinzo, 21 de julho.
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
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