Recensiones bibliográficas
Vindicação da tablatura. Sobre uma comunicação de John Griffiths
Isabel Rei Samartim

A honestidade intelectual e a vontade de justiça são elementos que podem ir juntos numa única pessoa. A vida pode levar-nos a desenvolver as mais variadas atividades, mas estas sempre acabam por nos definir e caracterizar através desses elementos fundamentais. Sempre senti a reclamação da guitarra galega como um dever musical e social, que implicava uma revisão da musicologia oficial e supunha um ajuste de contas com a historiografia nacionalista espanhola.
Nessa mesma linha, ainda que desde outra perspectiva, desenvolve-se a excelente comunicação oferecida pelo musicólogo John Griffiths (Melbourne, Austrália, n. 1952), o passado mês de dezembro, intitulada Turning the tables: reassessing tablature, sobre a vindicação da tablatura como elemento fundamental da evolução musical europeia e ferramenta indispensável para entender a formação dos músicos europeus.
Griffiths anuncia com esta palestra um futuro trabalho a ser publicado em agosto deste ano 2022, que aguardamos com alegria. O autor denuncia a falsidade de que a tablatura era uma notação “periférica” e pouco importante na música ocidental. Lamenta a diminuição dos estudos sobre paleografia musical e manifesta-se claramente contra aquela musicologia que continua a ver a história da música como uma sucessão de estilos, obras e autores em ordem alfabética, em vez de a tratar como uma parte da história social dos povos, do comportamento humano e da prática musical.
Adorei que o autor seja consciente de que repensar o significado da tablatura no âmbito histórico europeu requer some adjustments of historiographical values. E que
This narrative ignores many other dimensions, distorts other realities, and has been prejudicial to tablature.
Isso mesmo quis dizer eu à musicologia em geral, e à espanhola em particular, na tese A guitarra na Galiza (USC, 2020). A narrativa da “vihuela” e da “guitarra española” tem sido nefasta para a produção guitarrística na Galiza, especialmente no último século, sendo a guitarra um instrumento de uso habitual galego desde, no mínimo, o século XII. E também causou estragos na musicologia internacional ocultando durante muito tempo o papel de Portugal na evolução histórica da guitarra.
Pensamento crítico
Concordo absolutamente com a definição de Griffiths de músicos “plurilíngues”, quer dizer, que conhecem e usam vários métodos de notação musical. E partilho a hipótese de que isso era o habitual na Europa entre os séculos XV e XVIII, e mesmo antes e depois. Porque os diferentes métodos de notação permitiam diferentes usos musicais. E isso acontecia no passado e também no século XX, até à atualidade.
A aposta de Griffiths pela reinvenção da História da Música Ocidental é séria. Vai às fontes primárias, desenvolve o pensamento crítico e questiona o discurso estabelecido. O autor vê perfeitamente as incongruências e pergunta-se porquê um tipo de tablatura se chama Italiana visto que não era só na Itália onde se usava. O mesmo acontece com a tablatura Francesa que se usava na Inglaterra. Concordamos em que se o uso das tablaturas era comum, os nomes também deveriam sê-lo.
Adorei quando explica que a História da Música decidiu que na música medieval não havia acordes. Para uma guitarrista a pergunta é imediata: E como raio se desenvolveriam os instrumentos harmónicos como as guitarras, visto que temos conhecimento do seu uso desde antes da Idade Média?
Questões (linguísticas) a resolver
Na minha tese tentei explicar algumas questões organológicas e linguísticas dos cordofones dedilhados europeus. Procurei distinguir elementos determinantes e não determinantes para a elaboração duma nova classificação, a melhorar a de Hornbostel e Sachs, e expliquei a minha proposta. Também estudei as palavras com que foram nomeados os diversos instrumentos (cordofones dedilhados), nas diversas línguas europeias, e nas variantes dessas palavras ao longo do tempo sobretudo entre os séculos XII e XIX. Como era um trabalho sobre guitarra galega, também analisei o discurso nacionalista espanhol, e propus uma leitura democrática dos textos e dos contextos.
É por isso que queria advertir John Griffiths dalguns pormenores que, talvez, desde a anglofonia não sejam facilmente percebíveis. Precisamente, um dos elementos que aumentam a confusão da análise musical na Europa são os usos e características de cada língua, que provocam falsos amigos e contaminam significados, que são aproveitados por oportunistas para alimentar falsos argumentos e que, depois de décadas de uso, é preciso destrinçar com muita paciência.
Como sabemos, a palavra tábua no galego-português atual (e no resto de línguas românicas) vem do latim tabula e nomeia um objeto fino, de ampla e lisa superfície, que pode ser retangular, e que tem sido utilizado de diversas maneiras. Uma dessas maneiras, anterior à invenção do papel, foi a de utilizar a tábua para escrever signos, letras, números ou qualquer outra forma de linguagem humana.
Na Europa da época micénica, e também na antiga Mesopotâmia, no império Hitita, e noutras muitas culturas e povos, a escrita sobre tábuas de argila era habitual. Pensemos que a representação mais antiga de uma guitarra é da época Hitita. Na Antiguidade europeia havia o costume de escrever em tábuas de argila, de madeira e, mais tarde, de pergaminho. Daí que na Bíblia as leis de Deus fossem escritas em tábuas de pedra, o que é uma alegoria, pois a pedra é mais duradoura do que os outros materiais. Os autores do livro sagrado cristão estavam a enviar a mensagem de que as leis de Deus tinham de ser muito mais principais, duradouras e, portanto, verdadeiras, que quaisquer outras leis escritas em argila, madeira ou pergaminho.
Raimundo de Miguel registava a palavra tabula,-æ no seu imprescindível dicionário etimológico de latim, publicado em 1881, com vários significados, sendo um deles o de ‘pintura’, tomado de Séneca. No processo de surgimento das novas línguas europeias, séculos a seguir depois da queda do império romano, e a coexistência destas com o uso cada vez menor do latim, a palavra tabula passou a usar-se também com o significado de ‘partitura’. O que não é estranho, pois a partitura, a música escrita, é um desenho ou pintura que se realiza numa superfície fina e lisa, como uma tábua.Pode ver-se este uso de tabula na obra do alaudista paduano Giulio Cesare Barbetta (1582), onde se apresentam com título e prólogo em latim as Novæ Tabulæ Musicæ, traduzido: novas peças de música, ou seja, novas partituras. Na mesma obra as informações referentes à edição estão em alemão, pois foi publicada em Estrasburgo, e os títulos das peças, em italiano. Nas línguas da Itália a palavra tavola manteve o significado em latim. Assim,
(1615) publica em italiano de Roma as Toccate e partite d’intavolatura di cimbalo, querendo significar peças de música escrita, ou seja, partituras.As línguas evoluem e as palavras assumem novos significados. Por exemplo, em tempos de Bermudo a palavra Espanha era um corônimo que significava ‘península hispânica’, hoje chamada ibérica. Não havia nenhuma referência em castelhano a uma entidade política chamada Reino da Espanha. Só no século XIX, mais bem na segunda metade, a palavra Espanha adquire o significado da entidade política que pode identificar-se com o atual Reino e exclui as outras entidades políticas da península, como a República de Portugal, o Reino Unido, ou o Principado da Andorra. Antes do século XIX, nos textos históricos dominava o significado geográfico a indicar Espanha como o território da península ibérica, igual que Itália era o nome do território da península itálica. Por isso a expressão Guitarra espanhola presente em muitos documentos dos séculos XVII e XVIII, refere a música e os músicos provenientes da península ibérica, com todas as suas nações diversas, e não o ainda inexistente reino chamado Espanha.
Do mesmo modo, a palavra tablatura significa hoje, sem menoscabo da História da Música, a técnica alfanumérica de notação musical, que também se tem chamado cifra quando referida à tablatura numérica. Assim figura em todos os dicionários atuais. E isso não está enfrentado com a vindicação da tablatura como elemento fundamental da música europeia.
Origem da tablatura
Também na introdução da minha tese trato a questão geral da origem e da procedência, conceitos que alguma Musicologia costuma confundir. Nas minhas pesquisas à procura de informação sobre as palavras viola e guitarra, admirei o informado estudo da professora italiana Ella B. Nagy realizado na Universidade de Pádua. Entre outras valiosas informações, a autora analisa as fontes árabes dos séculos IX-X, em que os músicos indicavam as notas musicais através de letras e números, método ligado ao estudo do al ud e outros cordofones árabes (Nagy, 2017, pp. 188-189):
L'uso di lettere o di numeri per indicare le note musicali sulla tastiera degli strumenti a pizzico e documentato dal IX secolo presso gli arabi. Farmer (1930) dedica alcune pagine alle influenze della notazione alfabetica degli arabi sulla notazione europea, discutendo le lettere con cui gli arabi indicavano le posizioni delle note sul liuto (üd). Alcuni eruditi del X secolo applicavano i simboli derivati dall'alfabeto arabo per indicare le note musicali della scala diatonica ('Ali ibn Yahya, m. 912, Al-Farabi, m. 950) o della scala cromatica (Al-Kindi, m. 866) sul liuto. Le lettere impiegate non erano sempre le stesse, riferendosi sempre alle note relative. La prassi è documentata anche presso gli arabi di Spagna e di Nord-Africa.
Hoje conhecemos a formosa estela funerária da menina Lutátia Lupata, do século II d. n. E., com epigrafia e um retrato em mármore da jovem lusitana a tocar um cordofone dedilhado. Tendo em conta esta evidência do uso de cordofones dedilhados do estilo dos alaúdes e guitarras na península ibérica, muito antes da chegada dos árabes, o lógico seria pensar que os árabes não teriam inventado o instrumento, nem a notação, mas teriam recolhido, reinterpretado, e mesmo reinventado, elementos das culturas antigas. Pensemos no exemplo do Textus Receptus, a Bíblia escrita en grego que serviu de leitura e modelo para a tradução ao árabe do Novo Testamento. É sabido que os intelectuais árabes do Medievo sabiam grego e liam na língua original os filósofos da Antiguidade. A cultura árabe era realmente culta, informava-se e não deixava esquecer a parte valiosa das culturas vizinhas.
Voltando à professora Nagy, ela também faz referência a outra das confusões que povoam a Musicologia moderna, os mitos. Assim, um desses mitos antigos dizia que o inventor da tablatura seria um árabe chamado Fulano (Fulan) no reino de Granada (idem):
una fonte coeva all'introduzione dell'intavolatura ne attribuisce l'invenzione a un moro di Granada. Il manoscritto - oggi perduto - si intitolava Ars de pulsatione lambuti et aliorom similium instrumentorum, inventa a Fulan mauro regni Granatae, e si trovava in un monastero cappuccino di Girona. Il testo e datato al 1496 ma l'evento raccontato dev'essere accaduto prima. Il moro Fulan (jitliin in arabo significa 'persona anonima') era apprezzato per il suo talento di suonare piu strumenti a pizzico: «lambutum, cytharam, violam et his similia instrumenta» ('liuto, chitarra, viola e strumenti simili'), e per non sbagliare i semitoni decise di indicare la corda vuota con Alif, e ciascun semitono seguendo le lettere dell'alfabeto.
É bastante lógico que a tablatura alfanumérica seja um método eficaz de comunicação da música de cordofones dedilhados, pois descreve um mapa topográfico da escala, indicando as notas que devem ser tocadas. Ainda que a notação do ritmo na tablatura pode causar graves problemas de interpretação, a vantagem de chegar a muita mais gente com menos esforço é inegável. Por isso também achamos que a tablatura, além do próprio nome que nos leva à Antiguidade, pode ser igualmente muito mais ancestral do que pensamos.
Por isso, colocar o apogeu do uso da tablatura entre os séculos XV e XVIII é reduzir muito a hipótese do seu uso, que surge não se sabe quando, continua durante todo o século XIX e explode no século XX. A tablatura é hoje, como insinua Griffiths, um dos meios de comunicação musical mais usados em todo o planeta, muito por cima da notação musical moderna. E os cordofones dedilhados, especialmente a família das guitarras, parecem ser hoje uns dos instrumentos mais universais de todos os indo-europeus.
Isto faz-me lembrar outra das questões colocadas por Griffiths: Porquê o mundo académico desconhece como funciona uma tablatura, quando a grande massa mundial de músicos amadores sabe decifrar na guitarra qualquer canção? É realmente assombroso.
Concluindo
Celebro imensamente as vozes alternativas no mundo da Musicologia. O pensamento crítico é o que faz melhorar a Humanidade em qualquer das áreas de conhecimento. Mas, como diz um amigo, o pensamento crítico traz alguns problemas e por isso nem toda a gente o exercita: Os partidários do pensamento ortodoxo zangam-se contigo. Há a responsabilidade de demonstrar que a visão oficial não explica bem as cousas. Precisas a inteligência de ver o que não funciona e construir alternativas. Por último, é necessário demonstrar que essas alternativas são melhores para o conhecimento, a emancipação e a liberdade.
Nesse campo é que trabalhamos até agora e aí continuaremos. Sei que a relevância da tablatura, como a da guitarra galega, na História da Música Ocidental são elementos do pensamento crítico e da prática musical diária que servirão para melhorar os estudos de música em todas as suas vertentes e, com eles, a justiça social e histórica, a convivência e a paz entre os diversos povos europeus.
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