Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Dous novos cadernos galegos de música para guitarra

Isabel Rei Samartim
jueves, 7 de abril de 2022
Capa da canção napolitana Pozzo fa 'o prevete? de Javier Pintos Fonseca © 2022 by Fundo Pintos Fonseca, Museu da Ponte Vedra Capa da canção napolitana Pozzo fa 'o prevete? de Javier Pintos Fonseca © 2022 by Fundo Pintos Fonseca, Museu da Ponte Vedra
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Sabendo que não é fácil relatar o acontecido com a música para guitarra na Galiza do século XX, lanço-me a essa tarefa, não sem achar que é ainda prematuro qualquer intento de completitude e que o resultado terá de ser, por força, incompleto e escasso. Mas, um passo puxa por mais passos e assim é como se faz qualquer caminho, também o da guitarra galega.

Linhas orientadoras sobre a publicação guitarrística galega no século XX

Prelúdio n.º 5 para guitarra de Ramon Gutierrez Parada, 1934. © 2022 by Arquivo particular de Alejo Amoedo.Prelúdio n.º 5 para guitarra de Ramon Gutierrez Parada, 1934. © 2022 by Arquivo particular de Alejo Amoedo.

Nas pesquisas para a minha tese de doutoramento reuni alguns documentos que deixam traçar umas linhas orientadoras de como evoluiu a música para guitarra na Galiza e a sua publicação formal, ou seja, como chega ao presente a música escrita no passado. Dessa forma sabemos que nas primeiras décadas do século XX, antes de 1936, corriam pela Galiza de modo habitual partituras manuscritas, pulcramente escritas pel@s autor@s e sem hipótese de serem publicadas por alguma editora local. Assim temos o Alalá e Alvorada de Chané arranjado para grupo de plectro por Santos Rodriguez Gomez; as obras manuscritas de Ramon Gutierrez Parada, que sim tinha publicado na Itália; ou a música de coleções guitarrísticas como as de Alejo Amoedo ou Novio-Gimenez, que entre obras publicadas fora da Galiza, contêm música manuscrita de autores galegos.

Dentro das obras publicadas nesta época e achadas nas coleções galegas temos também música de Josefina Robledo, Tárrega, Llobet e Sors, Fortea, Cano e Arcas, e os latino-americanos Carlos Garcia, Alfonso Galuzzo, Ulises L. Cassinelli, Mario Rodríguez Arenas, Agustín P. Barrios. Estos últimos são também publicados pelo galego Francisco Nuñez em Buenos Aires. No imenso Arquivo Canuto Berea, na parte dedicada ao século XX achamos entre 1925 e 1932 canções francesas editadas por Salabert em Paris, com os acordes indicados por desenhos. Também música flamenca dos guitarristas Luís Maravilla (pseudónimo de Luís Lopez Tejera), Mario Escudero Valverde e outros, entre 1923 e 1959. Começaram a vir as publicações de canções modernas com cifrado americano desde a metade do século, publicadas pelas EMM (Ediciones Musicales de Madrid). E foi muito conhecida a guitarrista Meme Chacón na década de 60, com as canções pop publicadas também com cifrado americano.

Queda e recuperação no século XX até à atualidade

Mas o que era a criação musical galega estava pouco divulgada através das editoras. Logo após a queda brutal das décadas de 1940 a 1970, e a seguir a apertura democrática que intensificou a avalancha de música pop e rock, do folque e da indústria discográfica, vem o que parece, a todas luzes, uma recuperação da criatividade guitarrística galega.

De 1972 é a edição da partitura de Tino Prados, Zoraida, realizada pelo Círculo das Artes de Lugo. A partir de 1977 a AGG (Agrupación Guitarrística Galega) iniciou o seu breve mas intenso percurso, sendo um dos propósitos dar a conhecer a música dos e das guitarristas galegas através do seu boletim GVL (Guitarra, Vihuela, Laúde), onde se reproduziram muitas partituras de nova feitura, dando a conhecer autores como Xosé Chas, um dos mais prolíficos guitarristas galegos. Entre as décadas de 80 e 90 aparecem por vez primeira algumas partituras publicadas do guitarrista rianjeiro Manuel Vicente ‘Chapi’, ainda em ativo.

Em 1989 saem as edições dos arranjos realizados por Blanca Lorenzo e Miguel Anxo Murado. Dez anos mais tarde, em 1998 começam a editar-se em Lugo as obras de Concepción Planton Meilan. Em 2006 chega a música de Gloria Rodriguez Gil e os arranjos de José Luis Rodriguez Fernandez, ambos professores nos conservatórios da cidade de Vigo. De 2008 é o primeiro caderno do poeta da guitarra galega, Paco Barreiro, editado por Ópera Prima. Em 2009 publicam-se no Boletim da Academia Galega da Língua Portuguesa as primeiras peças do Fundo Valladares. E em 2010 começam a aparecer os cadernos para guitarra de Pepe Evangelista, guitarrista e professor na Corunha. Os vários cadernos de Manuel Herminio Iglesias Vazquez levam sendo publicados ao longo destas décadas e em 2020 aparece a edição de Sérgio Franqueira com uma seleção de obras do antedito Xosé Chas.

Mompou, Blanquer, Garcia Abril e Goss são compositores que escreveram para guitarra pensando na Galiza. Bem como os galegos Juan Duran e Octavio Vazquez, outro compositor galego que publica fora da Galiza música para guitarra. O guitarrista escocês estabelecido na Galiza, David Russell, realizou gravações da obra de Goss, Cantigas de Santiago, em diversos espaços arquitetónicos galegos. A editora Ópera Tres publica as transcrições de Bach e Scarlatti do galego Marcos Diaz. Também a editora Air Classical publica obras de António Rocha. O mesmo que a hoje imprescindível editora Dos Acordes tem no seu conjunto de títulos numerosos cadernos dedicados à guitarra dos guitarristas clássicos como o ourensano José Fernandez Vide, e modernos como Eulogio Albalat, Esteban Fragas, Mateo Arnaiz, Fernando Perez, e outr@s já nomeados neste artigo.

Novos cadernos para guitarra

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Finalmente, aparecem nesta primavera de 2022 dous novos álbuns de música para guitarra. São os publicados pela editora Viso, da Corunha, cuja diretora, Margarita Viso Soto, professora, compositora e pianista colaborativa, é uma referência no mundo da Musicologia galega pelo seu intenso labor de pesquisa e divulgação, nomeadamente nos recitais de piano, no acompanhamento do canto e na figura do pianista e compositor corunhês Marcial del Adalid. Como compositora, Margarita Viso tem realizado e publicado obras para piano, coro e diversas formações instrumentais. Ao mesmo tempo, o seu labor editorial foca-se na divulgação de música galega e de autores galegos, tendo também publicado obras de autores como Almeida Motta, Santiago de Murcia, Johann Sebastian Bach e Ludwig van Beethoven.

A Mundo Clásico adiantou o conteúdo e breve descrição destes dous novos cadernos, que são uma antologia de obras de interesse para o seu estudo nos conservatórios e no âmbito particular. Todas as peças fazem parte dos fundos galegos de música para guitarra e contêm dedilhação revisada, notas de edição e uma explicação, em três línguas, da origem de cada uma das peças e seus autores.

Caderno de guitarra (Obras dos fundos galegos), Ed. Viso

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O Caderno para guitarra contém uma obra do guitarrista Luís Eugénio Santos Sequeiros, o lindo trémolo dedicado à filha primogénita Conchita, e o bem realizado arranjo, do mesmo autor, da canção para voz e piano intitulada Um suspiro de Canuto Berea. Estas peças representam duas das vertentes que Santos Sequeiros desenvolveu como atividade musical familiar: A música para voz e guitarra com a finalidade de cantar e tocar as filhas e filhos, e a escrita para ser tocada a solo por ele mesmo ou por algum familiar. Faltaria aqui um exemplo da música de câmara realizada dentro e fora da família, que deixamos para outra ocasião.

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Neste Caderno para guitarra está também o belo Prelúdio do ourensano Gutierrez Parada, apresentado já nesta secção da revista Mundo Clásico. Está também a obra intitulada Maestoso do intelectual pontevedrês Javier Pintos Fonseca, que no seu imenso fundo musical deixou mais alguma obra da sua autoria. Trata-se dum minuete em 3/4 de inspiração clássica que denota um autor, se bem amador, muito informado e conhecedor da música de Mozart, Beethoven e Haydn.

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Está também neste caderno a mazurca de Parga, Minha lira Op. 8, n.º 1, gravada no disco Guitarra galega Vol. 1 da editora Air Classical como as outras peças deste caderno (salvo Um suspiro de Berea/Santos). O virtuoso Parga, um dos guitarristas históricos galegos mais destacados, caracteriza-se pela ambição das suas obras que se refletem numa partitura cheia de matizes, indicações e advertências, a notação dos diversos efeitos sonoros, o uso das cores harmónicas que antecedem as vanguardas do século XX. 

Finalmente, o Caderno de guitarra fecha com uma Sonata de autor desconhecido, que se conserva no caderno manuscrito ou Álbum de guitarra de Fernando Torres Adalid, membro da família Torres Adalid também possuidora dum enorme fundo musical, especialmente para piano. Esta sonata em duas partes, Andantino e Allegro, parece uma dessas composições incipientes, talvez realizadas por guitarristas amadores, que foram precursoras das grandes sonatas de Sors.

Caderno de canto e guitarra (séc. XVIII-XIX), Ed. Viso

Quisemos neste caderno refletir o tipo de canções com guitarra que se acham nos fundos galegos com exemplos únicos por diversos motivos: pela notável qualidade artística, por serem canções do âmbito da burguesia galega do século XIX, e por serem os únicos exemplares conhecidos destas obras. Os fundos galegos reúnem obras para voz de toda a Europa, é por isso que neste caderno temos cinco línguas: galego (português), italiano, francês, napolitano e castelhano.

O caderno abre com o vilancico galego intitulado Da minha aldeia depressa venho, de autores da letra e da música desconhecidos, cujo original para voz e guitarra está no Fundo Valladares, manuscrito do próprio José Dionísio Valladares (1787-1864), e que posteriormente foi incluído em diversos cancioneiros galegos como o Ayes de mi país (1865) de Marcial Valladares e o Cancionero Musical de Galicia (1942) de Casto Sampedro Folgar. A proximidade na letra e no carácter com os vilancicos de Melchor Lopez induzem a uma datação deste vilancico entre o século XVIII e o XIX.

Primeira página de Perchè mio caro bene de Baltasar Saldoni, Arquivo Canuto Berea, Corunha. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Primeira página de Perchè mio caro bene de Baltasar Saldoni, Arquivo Canuto Berea, Corunha. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Também há quatro obras pertencentes ao Arquivo Canuto Berea, que o distinguem pela sua internacionalidade e interesse musical. A obra de Baltasar Saldoni (1807-1889) em italiano, Perchè mio caro bene, recolhida no catálogo musical do compositor, que ganhou o concurso do Liceo de Madrid, em 1834, e abriu o álbum dedicado à regente Maria Cristina de Bourbon. Uma outra canção com letra em francês é um exemplo de comunicação da música europeia, pois trata-se duma peça italiana do jovem compositor Luigi Caracciolo (1847-1887) e do poeta Odoardo Ciani (1837-1900), arranjada pelo guitarrista italiano Giuseppe Bellenghi (1847-1902), que foi traduzida e publicada na França pela Casa Ricordi. Esta é a versão que aparece no Arquivo Canuto Berea, o que indica que também havia demanda de canções em francês na Corunha do século XIX, sem importar que as canções fossem de origem italiana, ou doutro lugar.

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As duas obras deste caderno que completam as quatro pertencentes ao Arquivo Canuto Berea estão em castelhano e são do mesmo autor, o misterioso e possivelmente galego Francisco Baltar, já tratado nesta secção da revista Mundo Clásico. Estas duas peças oferecem um belo panorama da canção romântica sobre poemas escolhidos e delicados, acompanhados por uma notável e virtuosa parte de guitarra, cheia de fantasia e sensibilidade tonal, que desenvolve um discurso harmónico de grande flexibilidade para o seu tempo, a primeira metade do século XIX. As obras, intituladas La pastorcita com letra do poeta J. Iglesias de la Casa, e El canto del marino com letra de M. E. Blanco, são autênticas joias da música de câmara dos fundos galegos.

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Finalmente, o Caderno de canto e guitarra, publicado pela editora Viso, contém uma obra conservada no Fundo Pintos Fonseca, no Museu da Pontevedra. Trata-se da canção napolitana intitulada Pozzo fa ‘o prevete?, da autoria de Vincenzo Valente (1855-1921) e Ferdinando Russo (1866-1927), autores de especial relevância na Itália dentro do estilo de opereta e canção cómica. O arranjo para voz e guitarra é de Javier Pintos Fonseca. A partitura original contém desenhos do autor e a assinatura do arranjo datada em 1895. É esta outra joia da autoria de Pintos Fonseca, intelectual, músico pianista e guitarrista, arquiteto, corredor de comércio e principal impulsor da Sociedade Filarmónica da Ponte Vedra.

Além da excelência das peças recolhidas, as obras deste Caderno de canto e guitarra (séc. XVIII-XIX) respeitam os matizes das partituras originais e observam uma dedilhação moderna para a parte da guitarra, responsabilidade da revisora dos textos.

Referências bibliográficas

Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. USC.
Rei-Samartim, I. (2021). Guitarra Galega Vol. 1. CD. Compostela: Air Classical.
Rei-Samartim, I. (Ed. e rev.). (2022a). Caderno canto e guitarra (s. XVIII-XIX). Corunha: Viso.
Rei-Samartim, I. (Ed. e rev.). (2022b). Caderno de guitarra (Obras dos fundos galegos). Corunha: Viso.

 

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