Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaCaderno do Francês: amor em tempos de guerra para guitarra (1)
Isabel Rei Samartim

O é um interessante manuscrito formado por 41 fólios encadernados em pergaminho (22x30 cm), que se conserva no Arquivo do Museu da Ponte Vedra na cota Sampedro 46-18. Contém sessenta e duas obras para guitarra, voz e guitarra, duas guitarras e exercícios, mais cinco melodias sem acompanhamento que fazem um total de 67 obras.
O caderno é uma reunião de música manuscrita e copiada por várias mãos, encadernado com posterioridade no volume que hoje se conserva. Isto evidencia-se nos cortes realizados para unificar o tamanho dos fólios, os quais produziram a perda de alguma informação nos extremos das páginas.
Desconhecem-se os meios pelos que o caderno chegou à biblioteca do polígrafo pontevedrês
Associado a este caderno, na mesma cota, apareceu o manuscrito barroco, junto de umas folhas soltas com pautas e anotações musicais. Parece que o Caderno do Francês, o manuscrito barroco e as folhas soltas, mais modernas, pertenceriam a algum conhecido de Sampedro que lhas confiou, possivelmente, na esperança de que o polígrafo soubesse preservá-las da passagem do tempo, cousa que sem dúvida foi lograda, pois os papeis acham-se em excelente estado de conservação.
Todo o caderno é bastante singular. O autor poderia ser um guitarrista de entre séculos, talvez ligado ao mundo militar e/ou político que juntou as suas partituras com o propósito de as ordenar. As obras estão copiadas por várias mãos, em papeis com diferentes tamanhos, texturas e tintas. Quer dizer, trata-se dum conjunto de peças escritas por vários guitarristas e possivelmente reunidas por um outro guitarrista que as encadernaria para uso próprio.
Soubemos deste caderno graças à tese de doutoramento de Xabier Groba sobre a vida e obra de Casto Sampedro. Groba (2011, p. 469-470) transcreveu na sua tese os títulos das peças, a conterem um bom número de canções patrióticas até agora desconhecidas. Já mencionamos o protagonismo que a Galiza teve na luta contras as tropas de Napoleão e da existência de guitarristas galegos e música para guitarra nesse tempo ligada aos assuntos bélicos.
Na primeira parte da tese A guitarra na Galiza temos relatado várias anedotas referentes ao emprego de guitarras nas batalhas que no caso da Francesada tornam a adquirir relevância. A pesar deste género musical não ser o mais numeroso dentro do Caderno, a informação que oferece contribui a alargar o conhecimento das canções patrióticas e dos guitarristas dessa época. Daí o nome de Caderno do Francês.
Conteúdo do Caderno do Francês
Das sessenta e sete obras para guitarra catalogadas, vinte e nove são canções com acompanhamento de guitarra, das quais vinte e seis estão em castelhano, duas, em italiano e, uma, em francês. Quinze canções são de tema amoroso, sete são satíricas, seis, patrióticas e há uma sobre violência de género. Há também vinte e nove peças para guitarra, entre as que há oito contradanças, seis glosas, três marchas, três valsas, três minuetes, um rondó, uma moinheira, uma sonata e duas peças de um misterioso J. Miguel M. B. Mais duas peças para duas guitarras e dous textos didáticos, como os apontamentos a modo de método intitulados Advertencias para la Guitarra. Além disso, aparecem cinco melodias soltas sem acompanhamento (uma contradança, uma valsa, um fandango, uma marcha e a canção Batalla de Badajoz).
A maior parte do repertório pertence às duas primeiras décadas do séc. XIX. No referente às canções patrióticas é claro que foram compostas e divulgadas durante a guerra (1808-1814) e/ou pouco tempo depois (1820?). Tanto as letras quanto a função desta música era a de narrar sucessos acontecidos nas batalhas, encorajar os soldados e celebrar as vitórias, o que hoje seria a propaganda num estado de guerra, objetivos diretamente relacionados com os acontecimentos reais e sincrónicos. Mas o caderno também contém um notável conjunto de canções de amor, misturadas com as anteriores, que revelam mais antiguidade.
Datação do Caderno
Para datar as obras do caderno, a falta de mais informações reparamos nos pormenores seguintes: Em primeiro lugar há que salientar o facto de que várias das obras estão compostas para guitarra de cinco ordens ou cinco cordas, cujo uso localiza-se no séc. XVIII. As cinco ordens ou cordas remetem para a composição das peças em épocas anteriores ao séc. XIX. Mas, também há um exemplo de obra para cinco ordens escrita nas primeiras décadas do XIX, que tratamos mais para a frente.
Em segundo lugar, a canção La Lesbia (p. 11) tem por letra um poema de Catulo traduzido pelo literato e militar espanhol
Em terceiro lugar, a moinheira para guitarra do Caderno do Francês, sendo uma melodia diferente, apresenta as mesmas características já comentadas para a antiga moinheira do fundo Valladares. Ambas as duas estão na mesma tonalidade, Lá M, e aproveitam as cordas graves ao ar (Lá e Mi) deixando mais livres os dedos que devem tocar a melodia, para poder fazê-lo comodamente ao tempo próprio e rápido das moinheiras.
Em quarto lugar, a ortografia empregada em castelhano, bem como no fundo Valladares, parece responder às normas prévias à reforma de 1815 como no termo "paxaro" (cast. atual pájaro) e a notável hesitação no emprego de bês e vês, como nos termos "bals" (valsa) e "volero" (bolero). Em quinto lugar, o emprego do nome das notas da solmisação (Elami, Fefaut...) é prática histórica a indicar um estádio antigo na aprendizagem dos elementos básicos do solfejo, como acontece no método de
Entre os autores nomeados no caderno, que são poucos em comparação com o total de obras, está o já mencionado Frederico Moretti (1769-1839), com uma seleção dos arpejos publicados no seu método. Por isto, e pelo apontamento das notas da solmisação, parece que o método de Moretti teve uma certa influência na conformação deste caderno. Este autor acha-se também nos fundos musicais dos
A Francesada e a música que deixou
Um outro autor mencionado é Ramón
De la proclama que el general inglés Lord Wellington dirigió al ejército después de la gloriosa batalla de San Marcial en 31 de agosto de 1813:
Guerreros del mundo civilizado, aprended de los individuos del 4.º ejército que tengo la dicha de mandar. Cada soldado de él merece con más justo motivo que yo el bastón que empuño. Todos somos testigos de un valor desconocido hasta ahora...
Españoles: dedicaos todos a imitar a los inimitables gallegos.
Wellington.
Cuartel general de Lesaca, 4 de septiembre de 1813.
A peça de Bonrostro, que está em compasso de 6/8, não tem carácter galego, nem podemos confirmar a possível origem galega ou portuguesa do autor, como sugere o seu apelido. Mas estes dados sim sugerem que a fama de Wellington ligada às tropas galegas do general Manuel Freire de Andrade, comandante do 4.º exército, deveu estender-se por toda a península e ser, na época, bem conhecida.
Lembremos que nessa batalha, e noutras anteriores, participou o nosso guitarrista da Ulha, José Dionísio Valladares. Não sabemos se o compositor da canção, Bonrostro, teria alguma participação na Guerra do Francês, é só uma hipótese que se desprende desta obra e do perfil comum aos militares músicos de final do século XVIII e começos do XIX.
De Ramón Bonrostro sabemos por Díez (2004, III, pp. 5-6) que era barítono, que se achava em Granada entre 1765 e 1767, que em 1788-1790 era músico em Cádiz, e que em 1796 se apresentou a uma vaga de tenor na Capela da Catedral dessa cidade andaluza em que trabalhou até depois de 1821. Estava casado e em 1800 obteve uma licença para ir a Madrid, cidade em que se demora mais da conta, o que lhe arranjou problemas com o bispado de Cádiz. Nesse assunto a mulher de Bonrostro solicita que o filho, Pablo, possa substituir o pai. Ficaria Ramón Bonrostro atrapado em Madrid por causa da guerra? Seria nessa etapa quando se publica esta obra? Cremos que foi publicada porque a cópia do nosso caderno parece estar realizada a partir de um original impresso.
Outros autores no Caderno do Francês
Do
Segundo o Diccionario de la RAE, "currutaco" é um adjetivo a indicar que algo é: "Muy afectado en el uso riguroso de las modas", o que hoje poderia ser um "queque" (em castelhano "pijo"). A dita academia parece assim uma sátira contra os usos, costumes e modas, na sua maioria francesas, que experimentava a península inteira e, também, a capital castelhana. Suárez-Pajares menciona a luta "contra el gusto francés que se estaba imponiendo entre la burguesía española de finales del s. XVIII". É muito possível que algum dos autores da música neste caderno tenha sido conhecedor do ambiente guitarrístico madrileno de final do século, mergulhado já na oposição à predominante cultura francesa.
Nada sabemos do que consideramos autor J.(F.?) Miguel M. B., do qual aparecem duas pequenas obras cujo título é unicamente esse nome. Não parece ter a ver com o Miguel García anterior. As duas peças são singelas e bem traçadas em 2/4 e 6/8, com um desenvolvimento melódico superior ao harmónico e compostas para guitarra de seis cordas. Um outro autor, dos poucos que se explicitam, é o veneziano Domenico
No próximo artigo continuamos a descrição do conteúdo do Caderno do Francês, que indubitavelmente é uma das joias do século XIX, dentro dos fundos galegos para guitarra.
Referências bibliográficas
Comentarios