Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

A coleção do Fundo Adalid. O Álbum para guitarra

Isabel Rei Samartim
jueves, 30 de junio de 2022
Fernando de Torres Adalid (Lluís Ferrant Llausàs, 1852) © 2015 by Carolina Queipo Fernando de Torres Adalid (Lluís Ferrant Llausàs, 1852) © 2015 by Carolina Queipo
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Dizíamos no artigo anterior que Fernando Torres Adalid (1818-1883) nasceu na Corunha, e era filho de Martim Torres Moreno (1779-1846) e Josefa Adalid Loredo (1794-1818), uma família dedicada aos negócios comerciais e financeiros, com alta posição social, militar e política, que cultivava um notório amadorismo musical. 

Pieza enlazada

Para ilustrar a ligação da música na educação dos irmãos Marcial e Fernando Torres Adalid, relatávamos os aspetos gerais da viagem que os irmãos realizaram por diversos países europeus. 

Mais tarde, Fernando Torres casou em Compostela com Amália Taboada Rada (1825- ca.1880) no ano de 1847 e tiveram três filhos, Eduardo, Álvaro e Maria Torres Adalid Taboada (Queipo, 2015, I, p. 49).

Lluís Ferrant Llausàs, «Retrato de Amália Taboada Rada», 1852. Queipo, 2015, II, p. 160. © 2015 by Carolina Queipo.Lluís Ferrant Llausàs, «Retrato de Amália Taboada Rada», 1852. Queipo, 2015, II, p. 160. © 2015 by Carolina Queipo.

O pintor catalão estabelecido em Madrid Lluís Ferrant Llausàs realizou os retratos do matrimónio em 1852 (II, p. 484-485). Entre a música e os negócios familiares, Fernando Torres Adalid faleceu na Corunha, em abril de 1883.

Atividade guitarrística na família Torres Adalid

A qualidade e atividade de Fernando Torres como intérprete de guitarra verifica-se nas partituras da copiosa biblioteca familiar e especialmente no seu Álbum para guitarra. Atualmente na propriedade da família Sangro Liniers, conservado no Paço de Vilasuso (Carral), este álbum foi classificado por Margarita Soto Viso, que o achou entre o resto de partituras (Queipo, 2007, p. 103-104). Anos mais tarde, Carolina Queipo (p. 104, n. 3) realizou a sua primeira descrição. 

O Álbum contém um alto conteúdo de música operística e de balé adaptada para o instrumento, o que era típico e próprio da época como já teorizaram outros autores (Iglesias, 1981-1983; Queipo, 2003, 2007, 2015), e como já temos confirmado no estudo dos outros fundos de música para guitarra. Queipo traça uma relação direta entre as óperas estreadas na Corunha e os manuscritos contidos no Álbum de Fernando Torres até ao ponto de, através das informações do Álbum e os indícios das óperas, aproximar a datação das estreias corunhesas.

Primeira obra no Álbum de guitarra de Fernando Torres Adalid. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Primeira obra no Álbum de guitarra de Fernando Torres Adalid. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

O Álbum para guitarra de Fernando Torres está encadernado apaisado e em pastas duras de cartão. Conserva-se na pasta de "Guitarra" do arquivo, com o nome de Fernando de Torres Adalid e a sua primeira numeração realizada por um membro da família. O fólio em branco que corresponde às páginas 95 e 96 evidencia que a cópia das partituras foi organizada e que se deixaram páginas em branco por faltar, talvez, as partituras originais correspondentes, possivelmente em previsão de acabar os fragmentos ausentes mais tarde. A música foi toda copiada pela mesma mão.

Capa da sexta edição do Método de Carulli. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Capa da sexta edição do Método de Carulli. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Nessa mesma pasta figura o exemplar original citado por Queipo (2015, I, p. 279) do Méthode Complete pour parvenir à pincer la Guitarre par les Moyens les plus simples et les plus faciles de Ferdinando Carulli, editado por Launer e comprado por Fernando de Torres em Bordéus, o 10 de janeiro de 1834, segundo a inscrição manuscrita na primeira página. Numa das páginas interiores do método achamos uma nota solta, manuscrita e assinada por um tal Antonio. A nota, escrita em papel mais moderno, carece de datação e o seu autor resulta-nos desconhecido. O seu conteúdo remete para elementos básicos da leitura de partituras guitarrísticas que não condizem com o elevado nível artístico do Álbum de Fernando de Torres, mas induz a pensar que em gerações posteriores teria havido na família mais amadores da guitarra a aproveitarem esse método para a sua instrução. O autor revela-se também guitarrista e até poderia ser o dono de algum armazém de música, como se verá na transcrição a seguir:

Con el amigo Sotero le mando dos piezas conocidas de usted, por si le son más fáciles de ejecutar, aunque para mi las encuentro bastante difíciles, pero en caso que ha [sic] usted le ocurra lo mismo yo le mandaré otras no conocidas de usted pero si más fáciles.
La explicación de los signos y números es la siguiente: Los números sueltos 1, 2, 3, 4 quiere decir dedos con los que pisan los trastes, el 1 pertenece al índice, el 2 al medio y así respectivamente.
Los números que están entre-paréntesis sirven para pulsar la cuerda perteneciente al numero indicado.
Y creo yo no tenga necesidad de decirle lo que indica el número de cejilla que hay que pisar porque creo no lo ignore, así como también los harmónicos que se hacen con el contacto de la yema del dedo colocándole en el traste del número que indique la pieza.
Su amigo
Antonio.

Autoria do Álbum para guitarra de Fernando Torres

Andante e três valsas de Aguado. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Andante e três valsas de Aguado. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Para determinar a autoria do Álbum, a falta de mais informação, é necessário analisar o próprio documento. Linguisticamente, o texto oferece as hesitações próprias da ortografia em castelhano da época (x por j, etc.), mais uma curiosa confusão ortográfica entre as letras cê (c) e esse (s), que pode dar uma ideia da origem do copiador ou copiadora. Assim, entre os títulos das peças pode ler-se:

Coro de Casadores [Cazadores] (nº de catálogo: 18)
Dionicio [Dionisio] Aguado (nº de catálogo: 28)
Fantacias [Fantasias] (nº de catálogo: 44)
Masurca [Mazurca] (nº de catálogo: 51)

Tendo em conta o elevado nível educativo da família, não cabe pensar que estes sejam erros ortográficos por falta de cultura. Ao contrário, são erros atribuíveis a alguém que possivelmente fala várias línguas, mas cuja língua materna não é a língua castelhana e, como consequência, produz alguma ortografia hesitante. Isto acontece em países cujas línguas não fazem diferença entre esses dous fonemas, como é o caso de Portugal, Brasil, o castelhano dos países da América Latina, mas também os territórios dentro do Estado espanhol não castelhanos como Catalunha ou Andaluzia. Outro desses territórios peninsulares não castelhanos é Galiza, onde na zona da Corunha a pronúncia sesseante era habitual, ainda mais no século XIX.

Assim, o autor da cópia do Álbum poderia ter sido tanto o próprio corunhês Fernando Torres, quanto um outro familiar com essa mesma característica fonética. Se tivermos em conta a segunda possibilidade, haveria que pensar nos laços familiares e económicos que uniram Marcial Torres, irmão de Fernando, com Josefa Krus Pacheco (Lisboa, n. 1815), filha duma das famílias mais influentes da Europa. Por isso algumas das partituras da Biblioteca Torres Adalid foram adquiridas em Lisboa. Talvez Josefa Krus, portuguesa de ascendência dinamarquesa, ou algum dos seus filhos, nascidos em Lisboa e sobrinhos de Fernando Torres, tivessem essa característica fonética na sua escrita em castelhano. Ao ser uma família com raízes diferentes das castelhanas, qualquer membro poderia ter cometido involuntariamente essas gralhas ao passar a limpo as partituras. Isto deveu ser necessário pois os originais estariam, com certeza, muito usados.

Datação do Álbum para guitarra

Bolero de Trinidad Huerta. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Bolero de Trinidad Huerta. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Para poder datar é devido conhecer o tipo de música que contém: O Álbum para guitarra contém um número de 68 obras, das quais 67 são para guitarra só e 1 para duas guitarras. O repertório está formado por música operística de Bellini, Paisiello, Mozart, Donizetti, Verdi, Ricci, Saldoni, Rossini. O italiano Pugni e o checo-austriaco Titl são os autores dos balés. Também há música instrumental de Johann Strauss e Phillipe Musard. Além disso, no Álbum acham-se valsas, minuetos, um bolero, umas variações sobre o fandango, uma jota aragonesa, um passodoble, as peças manchegas de teatro e as mollares corraleras, que denotam a sua origem popular castelhana e uma ligação direta com o mundo teatral. Dentro dos autores mencionados no texto como compositores ou arranjadores estão guitarristas bem conhecidos como Sors e Aguado, também há guitarristas menos estudados como Moretti, Huerta, Carnicer e Damas, e mais outros dos quais apenas há informação, e nalguns casos este Álbum é a única fonte conhecida até ao momento, como Antonio Gutiérrez González, Rafael Fernández, Luis López Muñoz, Florencio Gómez Parreño e um misterioso F. López.

É possível que Tomás Damas (1825-1890) seja o guitarrista mais moderno dos que compõem o Álbum de Fernando Torres, e que Federico Moretti (ca. 1765-1838) seja o mais antigo. Dentre os compositores não guitarristas, os mais antigos são Paisiello e Mozart, ambos traduzidos pela guitarra de Sors, sendo Giuseppe Verdi (1813-1901) o autor mais moderno. Tendo tudo isto em conta, as partituras originais teriam sido reunidas ao longo do tempo, entre o final do século XVIII e boa parte do XIX. Finalmente, para as salvar do deterioro teriam sido copiadas no Álbum durante as décadas centrais do século XIX, tendo possivelmente servido como instrução de guitarra a várias gerações dos Torres Adalid.

Características das obras do Álbum

Final da obra anterior e início das valsas de Gutierrez Gonzalez dedicadas a Aguado. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Final da obra anterior e início das valsas de Gutierrez Gonzalez dedicadas a Aguado. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Além da música operística, que era extremamente habitual na época dentro do repertório de instrumentos solistas como a guitarra ou o piano, chamam à atenção as sete valsas e um passodoble de Antonio Gutierrez Gonzalez dedicados ao seu mestre Dionísio Aguado, do qual Suárez-Pajares (1999) dá notícia unicamente pelo Álbum de Fernando Torres. A Grande Fantasia de Moretti é uma obra espetacular e de grande dificuldade, que foi publicada por Suárez-Pajares em 2008, ainda que usando outra versão. A anotada no Álbum de Fernando Torres oferece soluções interessantes a alguns problemas dessa publicação.

Série de rigodões de Pablo Gimenez. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Série de rigodões de Pablo Gimenez. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

As variações e outras obras de Sors e Aguado são conhecidas, salvo o primeiro Andante que não se acha entre as partituras publicadas por Jeffery (1994). As duas obras de Rafael Fernández são totalmente novas e merecedoras de publicação. O mesmo que as de Luis Lopez Muñoz e as de Pablo Gimenez, todos nomes desconhecidos na música para guitarra e com um ótimo nível artístico nas suas composições. A música de Gomez Parreño, Miguel Carnicer e Trinidad Huerta, dentro do que cabe, está mais atendida e resultam nomes algo mais conhecidos que os anteriores. Deles três o Álbum de Fernando Torres também oferece várias obras que ampliam o repertório destes autores.

No Álbum há também valsas de Strauss, rigodões de Musard, uma jota aragonesa, variações sobre o fandango e uma Sonata anónima, em dous tempos, Introdução e Allegro, que é indício das grandes Sonatas posteriores. Esta obra foi gravada no CD Guitarra Galega Vol. 1 (Air Classical) e parece pertencer a esse grupo de inúmeras e pouco ambiciosas peças do repertório para guitarra que ajudaram a elaborar as condições para a criação das grandes composições da época.

O protagonismo da ópera é um elemento indiscutível. As óperas contidas no Álbum foram estreadas durante a primeira metade do século XIX ou antes. Os arranjos teriam sido realizados em datas posteriores, ainda que próximas à estreia. A pesar de que a estreia das óperas na Galiza poderia propiciar os lançamentos das obras para guitarra baseadas nos temas mais famosos, no caso da família Adalid sabemos que o seu repertório foi em grande medida conformado com as modas europeias. Já vimos que na sua partitoteca familiar conservam-se partituras editadas em Portugal, e também na Alemanha, França, Itália e Inglaterra (Queipo, 2015, I, p. 174).

Os guitarristas arranjadores dos temas operísticos neste Álbum são Fernando Sors, Miguel Carnicer, Tomás Damas, F. F. López e Frederico Moretti. Das dezoito obras, onze são de arranjador anónimo. Abaixo segue uma listagem das obras inspiradas sobre temas operísticos que figuram no Álbum de Fernando Torres Adalid, por ordem de aparição:

1. Variaciones del Pirata, Bellini/Carnicer (n.º de catálogo: 1).
2. Variaciones Nel cor più non mi sento, Paisiello/Sors (n. c.: 10).
3. Variaciones sobre el tema Ó Cara armonia, Mozart/Sors (n. c.: 11).
4.Tanda de rigodones de la ópera el Belisario, Donizetti/arr. desconhecido (n. c.: 12).
5. Coro de Casadores en la Opera Straniera, Bellini/a. d. (n. c.: 18).
6. Paso sacado del Tercetino en dicha Opera [La Straniera], Bellini/a. d. (n. c.: 19).
7. Marcha del Nabuco, Verdi/a. d. (n. c.: 23).
8. Sinfonia en la Opera Nabucodonosor, Verdi/a. d. (n. c.: 24).
9. Rigodones de la Opera Linda de Chamounis, Donizetti/a. d. (n. c.: 25).
10. Wals de la Opera la Prigione d'Edimburgo, Ricci/a. d. (n. c.: 26).
11. Coro del 4.º acto en la Opera I Lombardi, Verdi/Damas (n. c.: 29).
12. Cavatina de la Opera el Pirata, Bellini/a. d. (n. c.: 30).
13. Aria final en la Opera Lucia Lammermor, Donizetti/F. F. López (n. c.: 36).
14. Rigodon de la Norma, Bellini/a. d. (n. c.: 38).
15. Gran Sinfonia en la Opera del maestro Bellini, [Norma] Bellini/Carnicer (n. c.: 39).
16. Variaciones en la opera Ypermestra, Saldoni/a. d. (n. c.: 43).
17. Recuerdos de Napoles. 6 fantacias, Donizetti/a. d. (n. c.: 44).
18. Grande Fantacia coda y final, Rossini/Moretti (n. c.: 63).

E os balés:

1 Paso Stirio en el baile la Ondina, Pugni/Damas (n. c.: 17)
2 La linda Beatriz, Titl/a. d. (n. c.: 68)

Na descrição das obras do catálogo contido na tese A guitarra na Galiza acha-se um comentário sobre cada uma das peças e uma comparação com as obras doutros fundos galegos, como são o da família Valladares e o do primeiro Canuto Berea, com os quais o Álbum para guitarra de Fernando Torres Adalid guarda várias relações, sendo um texto determinante para ajudar a entender o período de entre-séculos e a primeira parte do século XIX na história da nossa guitarra e da nossa música.

Referências bibliográficas

Iglesias de Souza, L. (1981-1983). "Notas del pasado. Algunas referencias a la ópera en La Coruña en el siglo XIX". Abrente (13-15), 64-110.

Jeffery, B. (1994). Dionisio Aguado. The complete works for guitar in reprints of the original editions, 4 v. Heilderberg: Chanterelle.

Queipo Gutiérrez, C. (2003-2004). "La ópera italiana en la literatura guitarrística de la primera mitad del siglo xIx: Las 'fantasías' de Federico Moretti, Miguel Carnicer y Mauro Giuliani". Montorio. Cuaderno de trabajos de la Real Academia de España en Roma, 112-129.

Queipo Gutiérrez, C. (2007). "La ópera italiana y la música para guitarra decimonónica de un fondo desconocido coruñés". M.-R. García (Coord. e ed.). El futuro de las Humanidades (103-110). Betanços: Imprenta Lugami.

Queipo Gutiérrez, C. (2015). Élite, coleccionismo y prácticas en la Coruña de la Restauración (ca. 1815-1848): El fondo musical Adalid, 2 v. Universidad de La Rioja, Facultad de Letras y de la Educación, Departamento de Ciencias Humanas.

Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela. 

Suárez-Pajares, J. (1999). "Gutiérrez González, Antonio". Casares, E. (Dir.) Diccionario de la música española e hispanoamericana, 6, (153). Madrid: Sociedad General de Autores y Editores.

Suárez-Pajares, J. (2008). Antología de Guitarra I. Piezas de concierto (1788-1850). Madrid: Instituto Complutense de Ciencias Musicales.

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