Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaO fundo para guitarra do Arquivo da Catedral de Lugo
Isabel Rei Samartim
Após vários anos a trabalhar na catedral de Lugo, o violinista e padre Luís Vila Ozores recebeu uma gratificação de duas onças de ouro. Sabemos isto por Ignacio Portabales Nogueira, cônego da catedral lucense, que realizou em 1923 um Abecedario de la Catedral, onde recolheu a informação mais interessante de todos os livros de atas conservados no arquivo da Sé. Ordenado por matérias, o Tomo IV tem uma parte dedicada a músicos e instrumentos musicais (p. 1888) onde aparece esta informação sobre
Os capelães de vela lucenses
Vila Ozores, para além de violinista na Capela de Música da catedral, exercia de capelão de vela, velando dia e noite o Santíssimo Sacramento. Em 1739 (Abel, 2012) estabeleceu-se na catedral de Lugo a Fundação dos capelães e guardas do Santíssimo Sacramento com o objetivo de o manter assistido dia e noite. Os capelães de vela tinham um salário de 1.550 réis pagados aos poucos e o que faltara pagava-se tudo junto no fim do ano. No momento da sua fundação havia mais de quarenta aspirantes dos que finalmente seriam escolhidos treze. Entre as obrigações dos capelães de vela estava oferecer preces, hinos e salmos que servissem de exemplo às pessoas que entravam no templo. Na época do nosso violinista e guitarrista Luís Vila Ozores ainda vigorava este curioso costume.
Na Ata Capitular de 25 de fevereiro de 1844 (Livro 34, fólio 149r) do arquivo da catedral, Vila figura como Capelão de Vela a cobrar 1.460 réis anuais. No mesmo livro, na Ata do dia 5 de outubro de 1844 (L. 34, f. 198r) estabelece-se que os capelães de vela cobrarão 2.090 réis. Porém não foi até setembro de 1853 quando Luís Vila Ozores começou a receber um salário regular de 3 réis diários pelo seu trabalho como primeiro violino da Capela de Música, vaga que ocupou ao ficar livre por morte do anterior violinista, Lucas Sánchez. Assim, vemos na Ata do 1 de setembro de 1853 (L. 35, f. 166v) que Vila pede receber o seu salário diariamente, e em 2 de setembro concedem-lhe os três réis por dia (f. 167r).
O manuscrito do arquivo da catedral
Copiadas da mão de Vila são as dez peças para guitarra conservadas no arquivo da catedral lucense, das quais a primeira é o famoso Allegro do guitarrista Juan de
As obras do manuscrito conservam-se no Arquivo de Música da Catedral, na pasta correspondente ao nome deste guitarrista, Arizpacochaga, e estão escritas em papel apaisado duplo e dobrado, de modo que cada fólio se divide em duas partes com duas páginas em cada parte, dando quatro páginas no total de cada fólio. O conjunto do caderno está formado por 2 fólios, 4 partes e 8 páginas das quais sete estão anotadas com a seguinte música:
1. Fólio 1: 1r - Capa: Alegro para Guittarra del célebre Arizpagochaga
2. Fólio 1: 1v - Moderatto.
3. Fólio 2: 2r - Contrad.ª; Vals [6ª en Re, Despacio]; Vals.
4. Fólio 2: 2v - Contrad.ª Ynglesa; Pastorela.
5. Fólio 2: 3r - Vals; Contrad.ª con Variac.s , V. n 1ª.
6. Fólio 2: 3v - 2ª V.n ; Vals [6ª en Re, 5ª en Sol]; Contrad.ª [6ª en Re].
7. Fólio 1: 4r - Moderatto (continuação e final).
8. Fólio 1: 4v - Contracapa: Em branco.
São, portanto, dez obras para guitarra solista: 4 valsas, 4 contradanças, 1 Allegro (Moderato) e 1 Pastorela. O Allegro de Juan de Arizpacochaga foi publicado por Salvador
A obra de Arizpacochaga publicada por Castro em Paris
Esta publicação saiu nos primeiros anos do século XIX. Por ela vê-se que Castro se relacionava bem no ambiente musical parisino: Tinha amizade com o compositor português João Domingos
As notícias do copista Vila são posteriores à publicação de Paris, como temos visto. Os documentos consultados indicam que Vila trabalhou na catedral lucense nas décadas de 1840-1850, e talvez já lá estivesse nos últimos anos da década de 1830. O Allegro de Arizpacochaga era anterior a todas essas datas. A fama desta obra teria perdurado por décadas no repertório guitarrístico, provavelmente dando lugar a outras versões. Neste ponto é interessante aquilo que lembra Briso (1995, p. 45) sobre Aguado.
No prólogo da Escuela de Guitarra (1825) Aguado dizia de Arizpacochaga que era um daqueles compositores que não acertaram a escrever aquilo que tocavam, como Laporta, Abreu e Garcia (o Padre Basílio). É possível que Arizpacochaga fosse um grande intérprete e improvisador, com um excelente ouvido e boa técnica guitarrística, que se permitia variar as suas obras à vontade. A transcrição do padre Vila poderia ser o resultado de uma adaptação guitarrística, decorrida ao longo do tempo, que fosse transformando aquilo que o próprio autor também variava nos seus concertos, fazendo com que a versão publicada não fosse a definitiva. Não seria estranho que a arte da improvisação tivesse boa presença entre os guitarristas novecentistas, como acontecia em épocas anteriores. Ainda na metade e último terço do século XIX, vemos o papel da família Chané, pai e filhos, como grandes improvisadores nos instrumentos de corda dedilhada.
A obra de Arizpacochaga publicada por Castro de Gistau e a conservada na coleção de Lugo são, em essência, quase idênticas com alguns pormenores que passamos a relatar: A versão publicada contém 98 compassos e a copiada por Vila, somente 87. Os compassos a mais da versão de Castro consistem, na sua maior parte, num desenvolvimento situado justo antes da reexposição do tema principal e dos motivos já apresentados e combinados sem novos contributos. A adição do Moderato no manuscrito de Vila, querendo significar “allegro moderato”, tampouco está na partitura publicada por Castro. Alguns adornos e motivos rítmicos no baixo também variam, o mesmo que algumas organizações rítmicas de arpejos em final de frase, bem como algumas notas soltas, que parecem responder mais a gralhas involuntárias da edição do que a escolhas conscientes do autor.
A maior diferença entre as duas versões é, portanto, esse desenvolvimento que aparece, segundo a nossa transcrição, a partir do compasso 49 até ao 67 da versão de Castro, momento em que ambas as duas voltam a coincidir. Também há dois compassos a mais em toda a peça: o primeiro no final da primeira parte, c. 28, e o segundo no final da obra, c. 98, onde se inclui uma repetição com 1 compasso para a segunda vez. Não são, portanto, diferenças de fundo que transformem a música noutra obra diferente, parecem mais bem desenvolvimentos em estilo improvisatório que se incorporaram para a publicação. Ou, pelo contrário, poderia pensar-se que o manuscrito de Vila respondia a uma versão simplificada da obra, eventualmente tocada por algum intérprete (o próprio autor?) chegado a Lugo.
O manuscrito de Vila e o Fundo Valladares. Contradanças em ternário
Uma das obras anónimas da coleção lucense acha-se também no fundo guitarrístico da família
Por outro lado, a família Valladares passou uma temporada em Lugo quando o pai José Dionísio foi nomeado Intendente daquela província, em outubro de 1839. Durante o ano escasso que os Valladares moraram na cidade da muralha houve um tempo em que José Dionísio se ausentou, e ficaram a sua esposa, Maria C. Nuñez e duas das filhas, ainda crianças, sendo uma delas Avelina Valladares. Dada a sua condição católica, é possível que Avelina, a irmã e a mãe, frequentassem os ofícios da catedral e os concertos da sua Capela de Música. Surgem então novas perguntas ainda sem resposta: Teriam tomado as mulheres Valladares algumas obras dos concertos da Capela da Catedral? Teria havido alguma relação entre o violinista Vila Ozores e a família de Vilancosta? Seria Maria Nuñez corresponsável, junto do marido José Dionísio, da ampliação do repertório guitarrístico familiar? Será este o momento em que uma jovem Avelina Valladares começa a estudar guitarra?
Era uma obra de Moretti
Durante bastante tempo, no mínimo, os anos que demorou a tese A guitarra na Galiza em ser acabada e apresentada, toquei em recitais e eventos diversos essa valsa do Fundo Valladares, que depois apareceu como contradança com variações, no manuscrito de Luís Vila, na catedral de Lugo. Mas foi só após a apresentação da tese que chegou a chave que faltava para saber a autoria da peça.
A confirmação da autoria de
As conexões entre fundos: átomos do magma musical
Por um lado, a história da família Valladares liga-se à atividade musical em Lugo através do manuscrito do violinista e guitarrista Luís Vila Ozores, integrante da Capela da catedral lucense. E por outro, ambos os dous fundos guitarrísticos ficam ligados ao livro de cravo da Teresa Verdugo através da obra de Moretti.
No livro de Esmit, a valsa de Moretti está escrita para cravo, como é lógico. Assim, tem havido também um labor de arranjo ou adaptação da obra para a guitarra, ou vice-versa, da obra de guitarra para o cravo. A sequência temporal dos três manuscritos permite pensar que primeiro teria sido escrita para cravo, em 1794 ou antes, porque é a data em que Teresa Verdugo chega a Ávila com o livro do seu mestre, e mais tarde teriam sido anotados no Fundo Valladares e no manuscrito de Luís Vila, os arranjos para guitarra, de diversa mas desconhecida autoria. A presença desta valsa em vários fundos para guitarra e tecla indica que deveu ser muito divulgada no seu tempo.
Finalizando com mais conexões, dizer que também parece haver uma ligação forte entre o Caderno do Francês, com essa Sonata em três andamentos, em estilo scarlattiano, mas claramente posterior a Scarlatti, de que temos falado em artigo anterior.
Não há referências a essa Sonata no livro de Teresa Verdugo, mas com certeza o estilo de Esmit é o que mais claramente ilustra, por enquanto, a possível origem dessa Sonata, agora gravada no CD Guitarra Galega Vol. 1 (Air Classical). Algumas das obras do manuscrito de Vila serão proximamente publicadas para uso moderno pela editora Dos Acordes.
Referências bibliográficas
Abel Vilela, A. (2012). Fundación dos capeláns e gardas do Stmo. Sacramento en Lugo. Lucensia, 44, 53-68.
Álvarez Martínez, M. R. (1988). Una nueva sonata atribuida a Domenico Scarlatti. Revista de Musicología, 11(3), 883-894.
Arizpacochaga, J. (18??). Allegro. Journal de Pièces de Musique pour la Guitare Tirées de divers Auteurs Espagnols. Paris: Salvador Castro de Gistau.
Briso de Montiano, L. (1995). Un fondo desconocido de música para guitarra. Madrid: Ópera Tres.
Calvo-Manzano, M. R. (1998). El arpa en el siglo XVIII español (el arpa en Ávila), 2 v. Madrid: Alpuerto.
Portabales Nogueira, I. (1923). Abecedario de la Catedral. Caderno sem editar no Arquivo de Música da Catedral de Lugo.
Puget, L. (1830?). Canciones con guitarra. Manuscrito. Biblioteca Nacional da Espanha.
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
Suárez-Pajares, J. (2008). Antología de Guitarra I. Piezas de concierto (1788-1850). Madrid: Instituto Complutense de Ciencias Musicales.
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