Recensiones bibliográficas

John Dowland, ou a paixão pela música

Isabel Rei Samartim
jueves, 1 de septiembre de 2022
John Dowland: La música inglesa en tiempos de melancolía © 2022 by fórcola John Dowland: La música inglesa en tiempos de melancolía © 2022 by fórcola
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Desde os momentos iniciais, a paixão por aprender a tocar um instrumento nutre-se da fantasia de exprimir com o próprio corpo aquela beleza, aquela emoção que, se tivermos sorte, teremos ouvido antes noutr@s intérpretes. A possibilidade de reproduzir a música com os nossos dedos domina a vontade d@ intérprete até nos obsessionar pela perfeição, que não é mais do que a transmissão das emoções musicais na adequada forma e intensidade.

Levada dessa paixão, há já um tempo que humildemente estudei e toquei boa parte da música para alaúde de John Dowland na minha guitarra clássica. Com os excelentes e imprescindíveis materiais da Diana Poulton, publicados em 1972 e ampliados em 1982, mergulhei no universo da tablatura e li o que se conhecia sobre a vida do profundo e delicado músico inglês. Leituras e práticas que me deram longos momentos de intensa felicidade.

É por isso que hoje acolho com grande alegria a notícia de ter saído um novo livro, o primeiro escrito em castelhano, sobre a vida e obra desse enorme alaudista do final do renascimento inglês. O volume intitulado John Dowland. La música inglesa en tiempos de melancolía, de Alberto Álvarez Calero, regente, compositor e investigador, publicado pela editora Fórcola em março deste ano 2022, contém um ensaio biográfico acompanhado de comentários sobre algumas obras e uma contextualização musical da época de Dowland. O livro está prologado pela intérprete, doutora e jornalista, María del Ser.*

Música de extrema beleza

O texto faz uma defesa aberta da música para alaúde como um dos repertórios europeus mais belos e admiráveis. Isto não seria possível se o instrumento não fosse já, na sua construção, uma obra de arte dentro do âmbito artesanal, cuja flexibilidade permite a criação de todas as delicadezas e a sua mera existência é indicador inequívoco duma longa tradição musical.

Ao falarmos de John Dowland é preciso termos em conta que ele foi um grande mestre inspirado pelas emoções que a corda dedilhada do alaúde consegue mover nas pessoas. E como a sua formação o levou também a ser um mestre do canto e da harmonia, a combinação dessas capacidades musicais não podia ter outro resultado que a mais extrema beleza.

O alaúde de Hamlet na Inglaterra dos séculos XVI e XVII

Paul Henry Lang (1941) qualificava Dowland de “virtuoso insuperável”, o qual vê-se nítido no seu repertório. Ele era um virtuoso, ou antes, um génio da emoção musical. Bem ajudado de Poulton e a professora Dawn Grapes, que em 2020 publicou um Guia de Pesquisa sobre Dowland, Álvarez Calero trata o contexto inglês em que se criou o talentoso alaudista, que torna a sua genialidade em consequência lógica do ambiente cultural da época.

O livro nomeia os numerosos alaudistas ingleses contemporâneos de Dowland e os madrigalistas que eram também ótimos alaudistas. Na listagem dos principais livros de música publicados na Inglaterra entre 1581 e 1622, pode ver-se a intensidade da produção vocal e a laudística que estava a ser definida desde a edição formal. Porque a quantidade ingente de música que circulava de maneira informal escapa hoje às estatísticas e aos dados.

Não é menor o facto dos alaudistas serem quer pessoas pertencentes às classes populares, como se vê nalguns retratos, quer professores com cargos importantes nas principais Cortes europeias. Dowland nasceu e cresceu nesse ambiente em Londres, de que ele era totalmente consciente e que se refletia na literatura do seu tempo. Como lembra Álvarez Calero, não por acaso Hamlet tocava o alaúde na Corte de Elsinor, onde Dowland trabalhou bastantes anos para o rei Cristiano IV da Dinamarca. As mais do que possíveis relações entre Dowland e Shakespeare também são apontadas neste livro.

A família de Dowland

A família conhecida de Dowland está formada pela sua mulher, de que se carece até ao nome, e o filho Robert. Mas existe a hipótese de ela ter um bom posicionamento económico, visto que mantinha uma casa no centro de Londres, o qual não era sinal de gente pobre. Dos documentos derivam-se poucas conclusões, mas em conjunto e aplicando o que sabemos das famílias de músic@s, podemos imaginar a família Dowland como um casal londinense, bem posicionado, católico, conhecedor de várias línguas incluído o Latim, cuja dedicação familiar era a música. Então, a mulher, o homem e os filhos e filhas, desde crianças, trabalhariam no ofício como intérpretes, copistas, compositoras e compositores, sendo possível a criação de música para desfrute da própria família, como aponta Álvarez Calero.

Mulheres alaudistas

Segundo Matthew Spring (2001), há indício de uso de alaúdes na Inglaterra desde o século XIII. Portanto, formula-se sozinha a hipótese de haver mulheres inglesas a tocarem alaúde desde a Idade Média. Sendo possível isto, o desenvolvimento do alaúde na Inglaterra durante os séculos XVI e XVII é uma consequência histórica lógica, também no referente à participação das mulheres.

É bastante frequente ver mulheres jovens da aristocracia nos retratos da época. Por serem mulheres e aristocratas difundiu-se a ideia de elas serem “só” intérpretes amadoras. Mesmo que a vida aristocrática tenha tendência à criação de indivíduos preguiçosos, isto não significa que as alaudistas “amadoras” não adquirissem um nível artístico superior.

Por exemplo, a rainha Elizabeth I tocava o alaúde e o virginal. Dela Álvarez Calero diz que tinha predileção pela música e que destacava pela sua técnica (p. 48), diplomatas chegados à Corte inglesa assistiam aos seus recitais (p. 54) e valorizavam significativamente a sua música (p. 55), a faceta musical da rainha era uma arma diplomática com a que cativava a atenção dos observadores (p. 56), ela tinha opinião sobre a interpretação de outros músicos (p. 57), o pintor Hilliards retratava de médio corpo a rainha tocando o alaúde com naturalidade, o que destacava o seu virtuosismo. Também a investigadora Craig-McFeely (2002) insistiu em três palavras básicas para definir a prática musical de Elizabeth I: sensibilidade, poder expressivo e sensualidade. Na verdade, estas não parecem qualidades de músicos medíocres.

Mais bem deveríamos pensar que houve uma tradição musical europeia em que as mulheres de todas as classes sociais participavam igual que os homens e desenvolviam as mesmas habilidades. O que fazia, e faz, a diferença era que os seus nomes ficavam de fora dos livros de História da Música.

A própria esposa de Dowland, Mrs. Winter, Mrs. White, lady Spencer, Mrs. Vaux, Mrs. Brigide Fleetwood, Kathryn Darcie (Mrs. Clifton), lady Lucy Russell (Condessa de Pembroke), Mrs. Nichols, lady Leighton, Margaret Board, lady Mary Wroth, lady Isabella Rich ou Anne Clifford eram algumas mulheres de classe alta e alaudistas. Todas aparecem no livro de Álvarez Calero, que também se lembra do Concerto delle done, o grupo musical integrado por mulheres que causou furor na Itália enquanto esteve em ativo, entre 1580 e 1597.

Protestantes versus católicos

O processo de perseguição das gentes católicas na Inglaterra dos séculos XVI e XVII é semelhante ao processo de perseguição das gentes hebraicas na península ibérica. Tudo acontece por motivos de poder político. A rainha Elizabeth I não permitiu qualquer prevalência dos Papas de Roma por sobre da soberania política da Inglaterra e pretendeu acabar com qualquer vestígio da cultura católica nos territórios do seu reino.

Daí a primeira desgraça do católico Dowland, que devia ser católico não por irlandês, como se lhe tem suposto, mas porque na Inglaterra, antes da limpeza religiosa, muitas pessoas inglesas eram católicas. Dowland pertencia a esse conjunto perfeitamente normal que começa a ser perseguido na metade do século XVI. De forma que quando ele nasce, por volta do ano 1562 ou 1563, já estava em andamento a campanha contra as gentes católicas na Inglaterra. E isso, como acontece hoje igual que na altura, prejudicou-o para o desenvolvimento da sua carreira em Londres.

A guerra fria montada na Europa em torno dos núcleos de poder político afetava todas as atividades inglesas. Temiam-se constantes complôs contra a Coroa. O conflito era de tal envergadura, que as novas leis protestantes impediam as gentes católicas de sair fora da ilha, com a finalidade de diminuir o contato delas com outros católicos. Desse modo, vemos que Dowland foi contra essas leis em todas as vezes que saiu de Inglaterra para visitar o Continente.

Dowland no Continente

O talentoso Dowland inicia o seu périplo vital pelo Continente indo a Paris, onde entre outros tem relação com o embaixador inglês Edward Stafford. Este embaixador foi quem, após ser acusado de traição e para recuperar o favor da rainha, deu aviso dos planos da Armada “Invencível” organizada pelo Reino de Castela, com ajuda da França, contra a marinha inglesa.

Noutra viagem à Itália, Dowland passou por Veneza, Pádua, Bolonha, Ferrara, Génova, Florença. Conheceu o ambiente da Camerata Florentina e também Giovanni Gabrieli, Simone Molinaro, e outros alaudistas da época. Truncou-se a viagem a Roma para conhecer Luca Marenzio, por causa duns paisanos conspiradores que teve de contornar, se algum dia queria voltar à Inglaterra.

Dowland, consciente do ambiente musical europeu, afirmava ter nascido trinta anos após o livro de alaúde do alemão Hans Gerle e naquele país conheceu, entre outros, o erudito Henrique Júlio, duque de Brunsvique, o seu protetor que o levou a ouvir a música de Michael Praetorius. Este duque foi também autor de várias obras literárias, inspiradoras séculos mais tarde das conhecidas Aventuras do barão de Münchhausen, de Rudolf E. Raspe.

Álvarez Calero dedica muita atenção à carta que Dowland escreve a Robert Cecil, secretário pessoal da rainha, para explicar as suas atividades fora da Inglaterra e suplicar ser bem recebido em Londres. Mas, apesar dos seus esforços, tampouco houve modo para John Dowland, admirado pelos grandes músicos europeus, de entrar a trabalhar na Corte londinense. O seu caminho vital ainda o levaria ao palácio de Elsinor, na Dinamarca.

Da Maria Balteira à Carolina Otero

Desde a Idade Média sabemos que a atividade artística, musical e literária de alto nível político, para reis e rainhas e outros membros das nobrezas e Cortes europeias, levava implícito um papel de embaixador ou diplomata. Temos na Galiza o caso da betanceira Maria Peres, a Balteira, cuja atividade artística no século XIII estava diretamente ligada à atividade diplomática entre reinos e casas nobres peninsulares.

Também temos a figura de Diego Sarmento de Acunha, I Conde de Gondomar, militar envolvido na guerra naval contra Inglaterra, escritor, erudito e amigo pessoal do rei James I, sucessor de Elizabeth. Em 1609 Dowland entra como alaudista na casa de Lord Henry Howard de Walden, da família dos Howard, amigos do Conde de Gondomar e favoráveis a uma aliança com o Reino de Castela. Gondomar é nomeado embaixador do Reino de Castela em 1612, mesmo ano em que Dowland entra a trabalhar para a Corte de James I. Na nossa opinião, como acontece com Shakespeare, é improvável que eles não se tivessem conhecido e tratado.

Carolina Otero com guitarra. Revista "Vida Galante", 1899. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Carolina Otero com guitarra. Revista "Vida Galante", 1899. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Salvador Castro Gistau, guitarrista editor em Paris da música de Sors e Arizpacochaga, também era suspeito de labores diplomáticas encobertas. Era o início do século XIX, quando se punha em andamento a organização dos Estados ditos modernos e a complexidade do Novo Regime. E outro ilustre exemplo foi a valguesa Carolina Otero, também possível guitarrista, cuja atividade artística em Paris não se desligava da política.

Não é de estranhar, pois, que no seu tempo Dowland exercesse a sua parte de correio diplomático para a Corte em que trabalhava, sobretudo, porque essa devia ser a única forma de sobreviver e conservar o emprego, numa época de guerra fria e quente em toda a Europa.

A melancolia, moda ou consequência?

Foi habitual na época de Dowland, generalizado entre os varões acomodados, um sentimento de melancolia ou intensa saudade, que foi protagonista de peças literárias e musicais, comentado em numerosos ensaios e mesmo diagnosticado como doença. Esse sentimento é hoje visto como uma moda, mas o crítico literário Lionel C. Knights (1937) explicava a melancolia inglesa da época como uma consequência do desenvolvimento do Capitalismo.

Este autor mencionava dous elementos fulcrais para a melancolia: 1) o espólio dos continentes americano, africano e asiático provocava uma maior concentração de população nas cidades, onde ainda não havia serviços básicos como o acanalamento da água, o qual era causa de inúmeras pragas e uma alta mortalidade; e 2) os varões acomodados pertencentes à nova classe de “new men” que não achavam o seu poder na possessão de terras ou na pertença à nobreza, mas nas habilidades comerciais e profissionais, não tinham suficientes saídas laborais no incipiente desenvolvimento industrial.

Estas características repetiam-se ao longo da Europa. Por isso, a melancolia, igual que a picaresca, não seriam características definitórias e exclusivas da Inglaterra ou da Espanha, mas respostas de determinados grupos sociais à situação gerada pelo desenvolvimento capitalista dos diversos Reinos europeus durante os séculos XVI e XVII.

Pelo repertório e as manifestações nas cartas e prefácios dos seus livros, Dowland estava adscrito ao grupo dos melancólicos, com uma tristeza característica e enormemente formosa. Mas, como também tem muita produção de dança nada melancólica faltaria por ver, dadas as suas influências europeias, quanta dessa melancolia não era a do estilo dos compositores italianos, ou das compositoras, como as cantoras e alaudistas Barbara Strozzi, Francesca Caccini e Maddalena Casulana.

Coda

Isaac Oliver, Possível retrato dum jovem John Dowland (ca 1590). © 2022 by Alberto Álvarez Calero.Isaac Oliver, Possível retrato dum jovem John Dowland (ca 1590). © 2022 by Alberto Álvarez Calero.

Por último, no livro de Álvarez Calero acha-se um interessante álbum de imagens com alaudistas e outras personagens importantes na época. O álbum inclui o hipotético retrato dum jovem John Dowland, que se non è vero, è magnificamente ben trovato. Os comentários sobre os costumes musicais nas obras de teatro e nas cortes inglesa e dinamarquesa são igualmente interessantes. Finaliza o texto com uma ampla recomendação de bibliografia e discografia.

 

Referências bibliográficas

Álvarez Calero, A. (2022). John Dowland. La música inglesa en tiempos de melancolía. Madrid: Fórcola Ediciones.

Craig-McFeely, J. (2002). "The signifying serpent: seduction by cultural stereotype in seventeenth century England". Em Austern, L. (Ed.): Music, Sensation and Sensuality (pp. 299-317). Routledge.

Grapes, K. D. (2020). John Dowland. A research and information guide. Nova Iorque: Routledge.

Knights, L. C. (1937). Drama and Society in the Age of Jonson. Londres: Chatto and Windus. 

Lang, P. H. (1941). Music in Western Civilization. Nova Iorque: Norton and Co. Publishers

Poulton, D. (1972). John Dowland. Londres: Faber and Faber.

Poulton, D. (1982). John Dowland. 2º edition. Califórnia: University of California Press.

Spring, M. (2001). The Lute in Britain: A History of the Instrument and Its Music. Oxónia: Oxford University Press.

Notas

Alberto Álvarez Calero, «John Dowland. La música inglesa en tiempos de melancolía», Madrid: Fórcola Ediciones, 2022, 242 páginas. ISBN 978-8417425067

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