Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

A música para guitarra no Arquivo Canuto Berea (1)

Isabel Rei Samartim
jueves, 26 de enero de 2023
Notícia do comércio de Canuto Berea em 22 de agosto de 1889 no jornal El Anunciador © 2023 by Isabel Rei Samartim Notícia do comércio de Canuto Berea em 22 de agosto de 1889 no jornal El Anunciador © 2023 by Isabel Rei Samartim
0,0014417

No passado mês de outubro teve lugar a apresentação na Corunha do livro intitulado La saga Berea en la ciudad herculina,* conduzida pelo seu autor, o Doutor Nilo Jesus Garcia Armas. 

Na altura recebi um exemplar do livro e um convite que não pude satisfazer, de modo que agora escrevo estas linhas a modo de resenha, pois o volume, apesar das falhas editoriais que a editora, a Deputação da Corunha, não soube resolver, tem muito interesse para quem gosta de saber mais sobre a história da música galega.

Nilo García Armas, «La saga Berea en la ciudad herculina». © 2022 by Diputación Provincial de A Coruña.Nilo García Armas, «La saga Berea en la ciudad herculina». © 2022 by Diputación Provincial de A Coruña.

O livro é um resumo dos dados essenciais da tese que Garcia Armas defendeu em 2022, na Universidade da Corunha. Nele dá-se uma visão da família Berea no seu conjunto e individualmente, acompanhada duma biografia de cada uma das pessoas, incluídos os não familiares que dirigiram a última fase do comércio de música, e faz-se uma análise da atividade empresarial da família sobretudo focada no século XIX, além da continuidade da firma durante o século XX. O livro está acompanhado dum Epílogo, Bibliografia e Anexos.

O volume não oferece as partituras da música composta pelos diferentes Canuto Berea, mas esta foi analisada pelo autor e pode ver-se na sua tese publicada em aberto

Uma característica que me alegrou muito foi o facto do autor reparar nas guitarras, que são tidas em conta em diversas ocasiões, quer como dados tirados dos documentos arquivados na Biblioteca da Deputação, quer em forma de citação da minha tese A guitarra na Galiza. Estou feliz por ter contribuído dalguma maneira ao desenvolvimento dos estudos musicais gerais. Até porque esse facto demonstra que sem as guitarras e a sua evolução, a história musical galega não estaria completa.

Uma cousa que o autor deste livro realiza muito bem, e pelo que merece os parabéns, é a síntese dos trabalhos anteriores: desde António Meijide Pardo e Xoan M. Carreira, precursores dos estudos sobre os Canuto Berea, passando pela professora Maria Pilar Alen Garabato, e as professoras Lorena Lopez Cobas e Beatriz Lopez-Suevos, bem como a bibliotecária Maria Dolores Liaño Pedreira. Todas estas pessoas realizaram trabalhos sobre a família Canuto Berea que foram lidos, analisados e discutidos no trabalho de Garcia Armas.

Também estão outros trabalhos paralelos que oferecem mais informações como os das autoras Margarita Viso, Beatriz e Alberto Cancela, Montserrat Capelan e Áurea Rey Majado. Achei em falta o trabalho da professora Carolina Queipo, mas está citado e consultado na tese do mesmo autor. O livro e a tese de Garcia Armas constituem uma boa síntese de todas elas, além dos seus novos e próprios contributos que permitem esclarecer as dúvidas que entre uns e outros teriam surgido ao longo do tempo.

A família Canuto Berea na tese ‘A guitarra na Galiza’

Nas próximas linhas e artigos explicarei o contributo da minha tese ao estudo da família corunhesa. Pelo nome de Canuto Berea referimos três gerações de músicos corunheses que fundaram e mantiveram a loja de música mais antiga e volumosa que conhecemos na nossa história musical. Sebastian Canuto Berea Ximeno (1810-1853) funda em 1835 o primeiro comércio de música na Corunha através da Sociedad Canuto Berea, que se documenta na Matrícula de Comércio em 1845. O filho, Canuto Berea Rodríguez (1836-1891), continua na loja ao tempo que se desenvolve como compositor e diretor de orquestra. Finalmente, o neto Canuto Berea Rodrigo (1874-1935) prossegue, primeiro através da sua mãe e depois em solitário, o negócio até 1931. Como bem explica a musicóloga Beatriz Lopez Suevos, uma loja de música não é só um negócio particular (Lopez-Suevos, 2008, pp. 16-18):

Una tienda de música no es sólo un negocio, es un lugar de encuentro para los aficionados, es un primer escenario en el que se dan a conocer las grandes y pequeñas figuras de la música local, es la base material para cualquier práctica musical, ya que ésta no puede tener lugar sin partituras, instrumentos, recambios, etc.

A loja dos Canuto Berea forneceria partituras, instrumentos e acessórios de música a toda a Galiza e ainda mais. É muito possível que boa parte das partituras descritas nos arquivos anteriores, especialmente nos corunheses, tivessem sido servidas pelos Canuto Berea. O fundo musical da família Adalid nutria-se dos serviços dos Berea (Queipo, 2015, I, p. 292; II, pp. 332-333). E no fundo Valladares damos conta de uma peça (Una sombra, canção de Rafael Botella e Francisco Gonzalez-Elipe) cuja cópia parece feita sobre a partitura da mesma obra achada no Arquivo Canuto Berea.

A atividade da loja durante a sua primeira etapa verifica-se pela quantidade de música para guitarra que fica dessa época. Ainda que as obras que se acham neste arquivo mercantil, como lembra Lopez-Suevos, são aquelas que não se venderam e por isso ficaram no armazém, as partituras conservadas dão uma ideia, mesmo que não for exata, sim bastante aproximada do volume e tipo de música que se comercializava na Corunha no século XIX e parte do XX.

Organização do arquivo

O fundo Canuto Berea compreende 194 unidades arquivísticas distribuídas em 20 caixas de livros, com 86 livros, 149 caixas de documentos e 25 caixas de pranchas de metal entre os anos de 1866 a 1973 (Lopez-Suevos, 2008, p. 16). Nós para esta tese revisamos as caixas de documentos a conterem partituras para guitarra, centrando-nos na música do século XIX.

Primeiramente, fizemos uma pesquisa inicial no catálogo em linha da biblioteca. Os registos que saíram sob o termo "guitarra" foram o fio do que puxamos para chegar à primeira revisão de 45 caixas. Isto levava a obras para todo tipo de instrumentos e livros de diversa classe. Por isso foi necessário reconsiderar esses registos para obter os resultados específicos da música para guitarra. Depois disso procuramos os registos específicos para guitarra correspondentes ao século XIX, de modo que a análise ofereceu resultados em 16 caixas, que fazem um total de 123 registos que, contando as duplicações e novas cópias, são 101 obras para guitarra diferenciadas.

Destas obras, 53 são partituras manuscritas e 48, impressas. As impressas foram editadas em vários países europeus. A maior parte delas, aproximadamente 80, foram publicadas entre as datas extremas de 1817, a indicar o começo do impressor Wirmbs em Madrid, e 1859, a indicar o final do impressor Carrafa em solitário na rua Príncipe, 15, de Madrid. Ainda que a primeira notícia da sociedade Canuto Berea é de 1835, conservam-se no arquivo várias obras gravadas por Wirmbs antes dessa data. Esse dado sugere que já desde o início o comércio de Canuto Berea Ximeno oferecia música para guitarra e as mais recentes publicações editadas em Madrid, Milão ou Viena.

Música para guitarra e para canto e guitarra

Canção brasileira Landum no Arquivo Canuto Berea. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Canção brasileira Landum no Arquivo Canuto Berea. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

As partituras manuscritas estão compostas em exclusivo por canções para voz e guitarra. Esta formação é a dominante no arquivo, a conter 72 canções, sessenta em castelhano, onze em italiano e uma em francês. Há casos em que se conserva a versão impressa das obras com acompanhamento para piano e guitarra, e outros casos em que a versão copiada é só da parte da voz com o acompanhamento de guitarra. O facto de haver obras publicadas com acompanhamento para os dois instrumentos, que foram copiadas na versão exclusiva com guitarra, indica o alto interesse que tinha essa formação instrumental.

A música para guitarra está toda impressa, compõe-se de 29 peças das que 27 são música para guitarra só, 1 para guitarra e outros instrumentos, e um método de solfejo com guitarra. Devemos salientar neste grupo a presença de quatro partituras que atribuímos a um editor pouco conhecido, chamado Manuel Gonzalez, ativo na primeira metade do século XIX. Na descrição dos anexos há mais comentário sobre este impressor.

Além deste impressor, o fundo para guitarra do Arquivo Canuto Berea contém a música das canções para voz e guitarra: Padre Mio de mi Vida de Paulina Cabrero Martinez, El Atrevimiento Feliz de Federico Moretti, El Soldado de Luis de Cepeda, El Último Adiós de Manuel Ducassi, La Pastorcita e El Canto del Marino de Francisco Baltar, Las Quejas a Cupido de José Melchor Gomis, Mi profesión de Fe de Nemesio Enriquez, Juana me dio una pisada de Manuel Ledesma, e mais obras cujos autores desconhecemos, que podem ver-se em pormenor no catálogo.

Íncipit do galope A Pérola de Napoleon Coste no Arquivo Canuto Berea. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Íncipit do galope A Pérola de Napoleon Coste no Arquivo Canuto Berea. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Entre as obras para guitarra salientamos La Perla de Napoleon Coste, o método de solfejo de Tomás Damas onde a guitarra é o instrumento base sobre o que se aprendem os rudimentos musicais, e as obras dos autores não galegos Antonio Rubira, Vicente Borrero, Mariano Bravo e Florencio Lahoz

A música operística é protagonista dentro das obras para guitarra, que se nutrem das aberturas, árias e outras peças operísticas de Bellini, Coccia, Mazza, Verdi, Donizetti, e numerosas danças: valsas (Strauss), galopes, hinos, polcas, redowas, xotes (schotish) e minuetos.

Rigodões da ópera Norma (Bellini) arranjados por Aquilino Garcia. Arquivo Canuto Berea. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Rigodões da ópera Norma (Bellini) arranjados por Aquilino Garcia. Arquivo Canuto Berea. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Dentro das curiosidades, há uma partitura editada por León Lodré com o número de prancha 1. Trata-se da Primera Tanda de Rigodones sacados de la ópera Norma del maestro V. Bellini puestos para guitarra por A. G. [Aquilino Garcia] conservada na pasta M646/15 do Arquivo Canuto Berea, o que parece ser a primeira partitura editada por este impressor.

Música de teatro no Arquivo Canuto Berea

Muitas das canções espanholas do Arquivo são canções populares arranjadas para voz e guitarra. Algumas delas estavam integradas em obras de teatro ou tonadilhas que mais tarde adquiriam peso próprio fora dos teatros, arranjavam-se e distribuíam-se para uso de amadores musicais e das veladas nos salões burgueses. Às vezes, a origem teatral deixava pegada na própria canção que se valia desses recursos para a sua interpretação. La vivandera é um exemplo de canção espanhola a fazer uso de recursos teatrais (Alonso, 1998, p. 342). Também La partida de Alfredo, no fundo da família Valladares, é um exemplo de música cénica espanhola.

Boleras del Jopéo de Pablo Bonrostro no Arquivo Canuto Berea. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Boleras del Jopéo de Pablo Bonrostro no Arquivo Canuto Berea. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

Um outro exemplo de canção popular são as Boleras del Jopéo con acompañamiento de piano forte y guitarra de Pablo Bonrostro, com sabor andaluz tanto na música quanto na letra. Trata-se do filho de Ramón Bonrostro, cujas obras aparecem no Caderno do Francês e no arquivo de Valdeflores (Viveiro). A partitura do Arquivo Canuto Berea está publicada por Wirmbs, sem número de prancha, e datada entre 1817 e 1834, por serem as datas em que este impressor estava ativo em Madrid. Frederico Moretti foi o avalista de Wirmbs quando este solicitou, em 1817, o patrocínio para fundar a primeira classe de gravado musical (Gosálvez, 1995, pp. 189-193). Esta peça situa Pablo Bonrostro depois de 1817. É a mesma que aparece na Biblioteca Nacional da Espanha no livro de José Lidon (1748-1827) intitulado Seguidillas con acompañamiento de forte piano. No caderno de Lidon, a obra de Bonrostro aparece sob o título de Seguidillas del Jopéo.

Como vem sendo habitual, entre ambas as peças há diferenças. A da BNE está em Sol M e Sib M, o acompanhamento é só para piano e não tem introdução nem passagens instrumentais intermédias. A publicada por Wirmbs está em Lá M e Dó M, tem linha de piano e de guitarra, introdução, passagens intermédias, e alguns elementos melódicos diferentes, além da letra que também difere. Contudo, não há diferenças tão grandes que possa afirmar-se que se trata de obras diversas. São a mesma obra com títulos, tonalidades, acompanhamentos e giros melódicos diferentes. A transformação das obras de entre séculos parece ser fenómeno habitual como já temos visto na música de Arizpacochaga, possivelmente derivado da extrema propagação da música mais desejada, que precisava da cópia rápida, ou de cor, com o consequente risco de erro, variação inconsciente, ou devida à adaptação a outros instrumentos.

Na segunda parte deste artigo trataremos uma visão diferente da música espanhola à luz dos documentos, o papel de António Machado Alvarez, pai dos poetas António e Manuel Machado, no debate sobre a criação desse mito identitário durante o século XIX e a sua relação com o Arquivo Canuto Berea.

Referências bibliográficas

  1. Alonso González, Celsa. (1998). La canción lírica española en el siglo XIX. Madrid: Instituto Complutense de Ciencias Musicales.
  2. García Armas, Nilo Jesús. (2022). Obras gallegas en el Archivo Berea. La aportación a la vida musical coruñesa desde la segunda mitad del siglo XIX hasta las primeras décadas del siglo XX y el patrimonio musical gallego de la saga Berea. Tese de doutoramento. Universidade da Corunha. 
  3. García Armas, Nilo Jesús. (2022). La saga Berea en la ciudad herculina. Corunha: Deputação.
  4. Gosálvez Lara, Carlos José. (1995). La edición musical española hasta 1936. Madrid: Asociación Española de Documentación Musical.
  5. Lidón, José e Bonrostro, Pablo. (ca. 1850-1900). Seguidillas con acompañamiento de forte piano. Biblioteca Nacional da Espanha. Cota: MC/4198/41.
  6. López-Suevos Hernández, Beatriz. (2008). "Las capas de la cebolla: el fondo Canuto Berea del archivo de la Diputación de A Coruña". Boletín DM. Asociación Española de Documentación Musical(12), pp. 16-24.
  7. Queipo Gutiérrez, Carolina. (2015). Élite, coleccionismo y prácticas en la Coruña de la Restauración (ca. 1815-1848): El fondo musical Adalid, 2 v. Tese de doutoramento. Universidade da Rioja.
  8. Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela. 
Notas

García Armas, Nilo Jesús. (2022). «La saga Berea en la ciudad herculina». Corunha: Deputação. 269 páginas. Sem ISBN. Depósito Legal C 1283-2022

Comentarios
Para escribir un comentario debes identificarte o registrarte.