Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

A música para guitarra no Arquivo Canuto Berea (2)

Isabel Rei Samartim
jueves, 9 de febrero de 2023
Blas Infante com a filha María Ángeles © 2023 by Blog Universo Andalucista Blas Infante com a filha María Ángeles © 2023 by Blog Universo Andalucista
0,0047551

Ao ilustrar a música popular andaluza, Alonso (1998) lembra os cafés-cantantes onde nos meados do século se espalhou o flamenco, sendo um dos representantes mais populares o cantor conhecido pela alcunha “El Planeta”. Entre as canções habituais, achava-se El punto de La Habana, cuja partitura para voz e guitarra é uma das mais antigas do Arquivo Canuto Berea. 

Uma visão diferente da música espanhola à luz dos documentos

A origem destas canções andaluzas é anterior ao século XIX. Faustino Núñez coloca a origem e difusão peninsular do El punto de La Habana no século XVIII e relata a descrição que o escritor malaguenho Estébanez Calderón faz de Antonio Monge Rivero “El Planeta” (Núñez, 2002, p. 292):

Estébanez Calderón "El Solitario" en "Un baile en Triana", dentro de la colección de relatos reunidos bajo el título genérico de Escenas Andaluzas, publicado en Madrid en 1847, describe cómo el mítico "cantador" gaditano "El Planeta", junto a su alumno "El Fillo" interpreta diversos cantes que, según su descripción, podemos denominar protoflamencos. "El Planeta" lejos de cantar a palo seco (sin acompañamiento de guitarra), se hace acompañar por una pequeña orquestina de guitarras, laúdes, bandurrias, panderos y castañuelas (estos últimos seguramente interpretados por las bailarinas). Resulta entonces que entre el repertorio del mítico cantador figura una canción llamada El Paño Moruno, canción que por entonces se interpretaba sobre la tonada del "Punto de La Habana", melodía muy popular difundida a través de la literatura de cordel.

Esta interessante descrição de Calderón oferece uma imagem do flamenco que choca contra o essencialismo posterior, sobretudo no referente à intervenção do grupo de plectro, que antecipa as posteriores orquestras de guitarras. Estas diferenças entre os documentos e o relato dominante na música espanhola precisam de análise demorada e abrangente da qual agora apontaremos alguns aspetos ligados à Galiza.

O erudito Antonio Machado Álvarez e o iberismo

"Colección de cantes flamencos" (1888), edição de 1974, de Antonio Machado Álvarez "Demófilo". © Dominio Público / BNE."Colección de cantes flamencos" (1888), edição de 1974, de Antonio Machado Álvarez "Demófilo". © Dominio Público / BNE.

Já o erudito folclorista Machado Álvarez tinha anunciado em 1881 a relação entre a música popular galega e a dos ciganos da Andaluzia, no seu trabalho auroral sobre o cante flamenco, como ele o denominou: a Colección de cantes flamencos (Machado, 1881). 

O pai dos poetas andaluzes Antonio e Manuel Machado tinha nascido em Compostela no tempo em que o seu pai, Antonio Machado Núñez, era professor na Universidade compostelana. Não sabemos se seria por nascimento, por história familiar, ou pelo ambiente liberal e erudito da casa dos Machado, que Demófilo desenvolveu nos seus trabalhos a informação que possuía graças às suas diversas origens culturais (Rei-Samartim, 2020).

Na sua Colección de cantes flamencos Machado narrou as numerosas ligações que havia entre a música galega e a dos ciganos da Andaluzia. Para isso empregou os seus conhecimentos de língua (galego)portuguesa e castelhana. 

Veja-se que está em português a citação que Machado emprega para justificar o emprego na época do neologismo Folk-Lore para referir o conjunto das crenças, usos e tradições populares, apoiando-se na definição e justificação do intelectual português Consiglieri Pedroso (Zófimo José Consiglieri Pedroso Gomes da Silva, 1851 -1910). Também, o conhecimento de língua castelhana permitia ao autor distinguir entre castelhano da Andaluzia e a língua cigana, além de definir uma proposta ortográfica para a escrita do que seria um dialeto andaluz do castelhano.

O texto está salpicado de exemplos e paralelismos entre elementos musicais galegos e andaluzes. Levado de um instinto iberista, segundo o qual a cultura deve entender-se como um Todo peninsular com características diversas, e também comuns, aos diversos territórios, Machado Álvarez começou o seu estudo advertindo que o flamenco não pode ser único representante da música espanhola. 

Notícia do jornal "A Nosa Terra" em 1928 pela visita de Blas Infante às Irmandades da Fala da Corunha. ANT, 1 de outubro de 1928, página 1. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Notícia do jornal "A Nosa Terra" em 1928 pela visita de Blas Infante às Irmandades da Fala da Corunha. ANT, 1 de outubro de 1928, página 1. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

O andaluzista Blas Infante Perez, que viajou à Galiza em 1928 para conhecer o nacionalismo galego da época (A Nosa Terra, 1928), apontaria mais tarde (1929-1933) uma interessante etimologia árabe do termo flamenco. E, ainda que Machado não tinha do flamenco aquela visão soberanista e nacional andaluza, os dous estavam de acordo numa ideia fundamental que exprime Infante (1915, pp. 98-99), que liga o seu pensamento soberanista com o iberista de Machado, contra o centralismo canovista e a construção de falsos símbolos nacionais:

Andalucía no puede querer que en España exista una organización regional uniforme. Cada región tiene una variable capacidad, a la cual es preciso proveer de medios formales, de recursos de actuación en armonía con el grado de aquella que en cada época alcance; así como deben las particularidades regionales encontrar su correspondencia en la adecuación de los organismos.

Para Machado, sendo o flamenco uma forma de música popular como aponta Infante, é expressão característica de um povo, mas não de outros, faltando-lhe essa essência nacional única que teria de ser representativa de todos. Machado responsabiliza desta atribuição essencialista aos touristes, ou estrangeiros não peninsulares que passeavam, observavam os costumes, escreviam as suas conclusões e acabavam por atribuir à música flamenca uma representação nacional que não era real (Machado, 1881, pp. 14-15):

Si pues estos cantes, por ser casi todos de autor conocido, por tener un asunto puramente individual, por la relativa escasez de su número y por el público que acude a escucharlos, es más bien propio de una clase del pueblo que de todo él, preciso será que los hombres serios reconozcan que este género es, entre los populares, el menos nacional de todos, y que es inexacta la idea propalada en Europa por algunos touristes de que es el cante flamenco el genuinamente español, en cuyo apoyo citan el favor que parte de nuestra aristocracia dispensa a los toreros, acérrimos protectores de este género, sin considerar que entre los aficionados al arte de Montes y Pepe-Hillo y una buena parte de la aristocracia española hay, por motivos históricos y naturales, muchos puntos de afinidad y de contacto.

O excludente nacionalismo musical espanhol

"Spanische Lieder" recopilado por Eduardo Ocón e publicado em 1874. © Dominio Público / BDH."Spanische Lieder" recopilado por Eduardo Ocón e publicado em 1874. © Dominio Público / BDH.

Um dos reptos assumidos no final do século XIX pela intelectualidade espanhola foi o de construir símbolos comuns para povos diferentes. Um exemplo dessa construção ideológica é o caderno intitulado Cantos Españoles. Coleccion de aires nacionales y populares, publicado em Málaga para voz e piano (Ocón, 1874). A publicação, oferecida em castelhano e alemão, inclui umas notas explicativas sobre as peças e os autores, além de um prólogo onde se afirma que o seu objetivo é "dar a conocer en el Extranjero algunos de nuestros cantos nacionales y populares". Dous parágrafos mais para a frente, Ocon reconhece que "En cuanto a los [cantos] propiamente populares que figuran en este libro -todos andaluces- han sido tomados de la boca del mismo pueblo". Quer dizer, todas as canções recolhidas como representativas são unicamente andaluzas.

"La música del pueblo" (1866), cancioneiro espanhol do compositor Lázaro Núñez Robres. © Dominio Público / Fundación Joaquín Díaz."La música del pueblo" (1866), cancioneiro espanhol do compositor Lázaro Núñez Robres. © Dominio Público / Fundación Joaquín Díaz.

Algo do estilo acontecia anos antes no cancioneiro de Núñez Robres (1866) intitulado La música del pueblo, que da música galega unicamente incluía uma moinheira, demonstrando assim que a música galega não tinha muita presença nesse pueblo. A mesma sorte teria a guitarra como instrumento típico peninsular. O seu processo de simbolização tomaria a parte pelo todo e converteria a música cigano-andaluza para guitarra no paradigma da música espanhola, ignorando e mesmo apagando a música para guitarra de outras partes do Estado.

Como vemos, Machado Álvarez apontava que inicialmente são as pessoas não peninsulares (touristes) as responsáveis da paternidade dessas atribuições essencialistas. Lembremos que um dos primeiros documentos a empregar o termo l'Espagne, em singular, para referir o reino que se conhecia internacionalmente em plural: les Espagnes, foi o assinado oficialmente pelo Rei da França, Luís XV, em 1761 no Terceiro Pacto da Família Bourbon. Pensemos nos estrangeiros como Robert Southey e outros a tentar descrever, segundo a sua visão cultural, a sociedade peninsular. O seu essencialismo praticado noutros países europeus, ideologia que tem raízes no século XVIII quando está já bastante desenvolvido o Capitalismo moderno, teria influído na nova política espanhola e no centralismo denunciado pelos iberistas na metade do século XIX.

Machado e a Galiza

O erudito Machado, professor em Sevilha onde nascem os seus dous filhos, conhece a cultura galego-portuguesa, a castelhana, a andaluza, a catalã e a italiana. A sua erudição leva-o a comparar o flamenco com a música galega. 

Fragmento do primeiro alalá do cancioneiro de Marcial Valladares "Na alma se me cravou". © 2023 by Tero Rodriguez.Fragmento do primeiro alalá do cancioneiro de Marcial Valladares "Na alma se me cravou". © 2023 by Tero Rodriguez.

Assim cita o paralelismo entre as soleares de três versos e as tríades célticas (ele diz que toma esta ideia do catalão Milá Fontanals), reconhece e interpreta expressões galegas que acha nas coplas do cante como as imagens do limón verde e do pino verde, ou versos inteiros como em Jasta el arma m'ha yegao / la raís e tu queré, que imediatamente liga com a primeira estrofe do primeiro alalá do cancioneiro de Marcial Valladares: "Na alma se me cravou / a raiz do teu querer" (Rei-Samartim, 2011).

Machado e Valladares conhecem-se através de Laverde Ruiz e todos conhecem Manuel Murguia. As relações entre estes e mais intelectuais galegos foram tratadas em Orjais e Rei-Samartim (2010, pp. 39-43).

Capa do cancioneiro de Marcial Valladares, "Ayes de mi país" (1865). © 2010 by Dos Acordes.Capa do cancioneiro de Marcial Valladares, "Ayes de mi país" (1865). © 2010 by Dos Acordes.

Agora queremos lembrar que a ideia renovadora que Machado Álvarez tinha da cultura peninsular não chegou a concretizar-se por causa do avanço da ideia centralista na época de Cánovas que, contra as advertências dos iberistas, e depois dos soberanistas, dominou as relações políticas espanholas até à atualidade. 

Arranjo para guitarra do primeiro alalá do cancioneiro de M. Valladares. © 2011 by Isabel Rei Samartim.Arranjo para guitarra do primeiro alalá do cancioneiro de M. Valladares. © 2011 by Isabel Rei Samartim.

Esta questão está diretamente relacionada com a construção na Espanha de uma guitarra espanhola e, na Galiza, da ideia da guitarra como instrumento não galego.

A descrição de Calderón antes citada também evidencia uma ligação entre Galiza e os começos do desenvolvimento da música popular andaluza. Não parecerá estranha a presença de elementos galegos na cultura andaluza se tivermos em conta a forte emigração à Andaluzia, em especial, a Cádis da população galega em diversos momentos da história peninsular (Rey, 1994; López, 1994). Segundo a professora Ofelia Rey (1994, p. 95) no século XVII:

los gallegos constituían el grupo mayoritario de entre los varones forasteros que se casaban en la ciudad, pero consideramos muy expresivas las cifras obtenidas para el Puerto de Sta. María y, en general, para toda la Bahía de Cádiz. [...] Al igual que en el Puerto, en otras localidades de esta zona los gallegos constituyen la comunidad inmigrante más numerosa.

O natural, como aponta Machado, é que os galegos tivessem deixado alguma pegada nos lugares que habitaram já em tempos antigos e até à atualidade. Além dos exemplos nomeados, do mesmo modo que os cantos de ida e volta, como as habaneras e as rumbas cubanas, parece-nos que também nos cantores pode haver alguma relação, ainda sendo eles na maior parte de origem cigana. Com relação a isto, queremos notar somente um pormenor curioso. No texto de Calderón aparece “El Fillo” como aluno do “El Planeta”. O emprego da alcunha fillo (filho) é próprio de galegos e portugueses, tanto pela língua quanto pelo uso, e pode servir para definir uma filiação ou também referir uma pessoa mais nova de género masculino. Não nos atrevemos, nem temos documentos que nos permitam afirmar que Francisco Ortega “El Fillo”, nascido na Andaluzia, tivesse ascendência galega ou portuguesa. Mas o ser chamado de filho, quer por um mentor que carinhosamente lhe colocou a alcunha, quer por tê-lo herdado de antigos parentes, indica algum tipo de filiação galego-portuguesa.

Canção andaluza "El punto de la Habana" editada por Benito Carrafa. Fonte: Arquivo Canuto Berea, caixa M200. © 2023 by sabel Rei Samartim.Canção andaluza "El punto de la Habana" editada por Benito Carrafa. Fonte: Arquivo Canuto Berea, caixa M200. © 2023 by sabel Rei Samartim.

Então, parece possível (e nada estudado) o facto de haver influências entre as diferentes culturas musicais peninsulares. O arquivo musical da família Berea assim testemunha. O pouco estudo que teriam suscitado estas evidências está em relação direta com a negação das diversas culturas e a ideia de uma nação espanhola única, uniforme e sem diferenças. Precisamente, para poder ver as influências da música galega na andaluza, e vice-versa, é necessário definir o que sejam uma e outra. Isto é, reconhecê-las como culturas diferentes pertencentes a povos diferentes.

E daí partir para a ideia da península como uma ilha, no estilo de Saramago, em que decorrem interações constantes entre umas e outras sociedades, nações e culturas. Tal como o reintegracionismo vê a língua na Galiza. Tal como António Machado Álvarez via a música andaluza. Assim também a guitarra galega.

Referências citadas
  1. A Nosa Terra. (1928). Blás Infante. Corunha: 1 de outubro, p. 1.
  2. Alonso González, Celsa. (1998). La canción lírica española en el siglo XIX. Madrid: Instituto Complutense de Ciencias Musicales.
  3. Infante, B. (1915). Ideal andaluz. Sevilha: Joaquín L. Arévalo.
  4. Infante, B. (1929-1933). Orígenes de lo flamenco y secreto del cante jondo. Ed. Fasc. publicada pela Junta de Andalucía em 2010.
  5. López López, Roberto Javier. (1994). Gentes del norte peninsular en Andalucía durante la Edad Moderna. Notas sobre una corriente migratoria. Eiras, A. e Rey, O. (Eds.). Les Migrations internes et à moyenne distance en Europe, 1500-1900. I Conférence Européene de la Commission Internacionale de Démographie Historique. Santiago de Compostela, 22-25 setembro 1993, II (pp. 467-478). Santiago de Compostela: Consellería de Educación e Ordenación Universitaria, Comisión Internacional de Demografia Histórica.
  6. Machado Álvarez, A. (1881). Colección de cantes flamencos. Sevilha: Demófilo.
  7. Núñez, Faustino. (2002). Cuba en la música española y andaluza. Navarro, J. (Coord.). Cuba y Andalucía entre las dos orillas (pp. 261-302). Sevilha: Consejería de Cultura, Consejo Superior de Investigaciones Científicas.
  8. Núñez Robres, L. (1866). La música del pueblo. Colección de cantos españoles. Madrid: Calcografía de Echevarría.
  9. Ocón, Eduardo. (1874). Cantos Españoles. Coleccion de aires nacionales y populares. Málaga. 
  10. Orjais, José Luís e Rei-Samartim, Isabel. (2010). Ayes de mi país. O cancioneiro de Marcial Valladares. Baiona: Dos Acordes.
  11. Rei-Samartim, Isabel. (2011). Um cancioneiro estradense. Miscelánea Histórica e Cultural, 12 (pp. 251-259).
  12. Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela. 
  13. Rey Castelao, Ofelia. (1994). Movimientos migratorios en Galicia, siglos XVI-XIX. Eiras, A. e Rey, O. (Eds.). Les Migrations internes et à moyenne distance en Europe, 1500-1900. I Conférence Européene de la Commission Internacionale de Démographie Historique. Santiago de Compostela, 22-25 setembro 1993, II (pp. 85-130). Compostela: Consellería de Educación e Ordenación Universitaria, Comisión Internacional de Demografia Histórica.
Comentarios
Para escribir un comentario debes identificarte o registrarte.