Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

A música para guitarra no Arquivo Canuto Berea (4)

Isabel Rei Samartim
jueves, 23 de marzo de 2023
Anúncio de discos com música galega em 1905 © 2023 by Isabel Rei Samartim Anúncio de discos com música galega em 1905 © 2023 by Isabel Rei Samartim
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No último quartel do século XIX localizamos em Vigo, na altura a cidade galega mais populosa, no mínimo três estabelecimentos de música onde os cordofones dedilhados tinham grande protagonismo. O mais antigo que conhecemos é a loja de música do violoncelista Mariano Miguel Alonso, que foi a primeira sucursal não oficial de Canuto Berea em Vigo, desde 1877, e simboliza o início da expansão do negócio do corunhês a uma cidade com o maior potencial económico da Galiza.

Mariano Miguel Alonso

Mariano Miguel Alonso era violoncelista e professor de música no Liceu de Vigo. Também era dono dum comércio situado no mesmo número da rua do Príncipe onde uns anos mais tarde Andrés Gaos Espiro comandaria a nova sucursal, esta sim oficial, da família de Canuto Berea (Faro de Vigo, 1879; El Diario de Pontevedra, 1914).

Na loja de Miguel Alonso podiam adquirir-se cordofones dedilhados tais como diversos tipos de guitarras, bandurras e bandolins, além de repertório, cordas e acessórios para estes instrumentos. Lopez Cobas (2007, p. 320) afirma que os fundos do armazém de Miguel Alonso foram comprados por Canuto Berea em 1881, quando o violoncelista deixou Vigo para ir a Madrid, possivelmente com a ideia de facilitar os estudos de piano da sua filha Ascension.

Fatura de Canuto Berea a Mariano Miguel Alonso em 1877. Fonte: Arquivo Canuto Berea. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Fatura de Canuto Berea a Mariano Miguel Alonso em 1877. Fonte: Arquivo Canuto Berea. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

No Arquivo Canuto Berea vimos oito faturas a Mariano Miguel Alonso, sendo que Garcia Armas (2022, p. 253) registou um total de 33 cartas entre 1874 e 75, e mais 29 em 1877. Eles dous conheciam-se, pelo menos, desde o ano 1874, em cujo mês de setembro Berea dirige-lhe uma carta a falar de obras musicais, acabando com uma curiosa despedida:

Siento en extremo la causa que le obligó á salir de España, pero V. sabe que siempre y como quiera puede disponer de S. S. S. y amigo, q. l. b. m. Canuto Berea.

A carta, datada em 12 de setembro de 1874, ia dirigida a um endereço em Lisboa. Desconhecemos as causas que levaram Mariano Miguel Alonso a viajar até à capital portuguesa, mas pela época e a expressão de Berea essas causas bem puderam ser políticas. A 1ª República espanhola decorria entre 11 de fevereiro de 1873 e 24 de dezembro de 1874. Em qualquer caso, noutra carta de 10 de janeiro de 1877, Berea responde a Miguel Alonso que acha boa a ideia de abrir um estabelecimento de música em Vigo e oferece-lhe os seus serviços como fornecedor:

Encuentro muy bien la idea de estabelecer un almacen de musica, pianos ó instrumentos de todas clases y cuente V. conmigo pues conozco su honradez y me comprometo á surtirle de todo a precio que V. y yo podamos utilizarnos […]

A seguinte carta é de cinco dias mais tarde, 15 de janeiro de 1877. Berea e Miguel Alonso falam da compra dum piano e parece que a loja está já aberta. No Livro 2 de contas, que se acha também na Caixa 1 do Arquivo como as cartas anteriores, conservam-se as oito faturas de Canuto Berea Rodriguez a Mariano Miguel Alonso que são interessantes para este estudo, pois os cordofones dedilhados são os instrumentos mais adquiridos.

Com data de 27 de outubro de 1877 regista-se uma fatura da Casa Canuto Berea a conter 20 itens por uma soma total de 1.068,20 réis. A música inclui obras de Mahler, Lamothe, Barbieri, o método de solfejo de Romero, o de flauta de Gonzalez, o de acordeão de Denis. Também está entre as peças solicitadas a obra Mandolinata para guitarra que José Campo Castro publicou nesse mesmo ano. E três tipos ou qualidades de guitarras chamadas "charol", "doradillo" e "palo santo (cilindro)" com os seus preços, respetivamente: 44, 70 e 130 réis. Os mesmos três tipos de bandurras vendiam-se a 40, 64 e 130 réis. Os violinos eram a 160 réis e os seus estojos a 50. Estes itens tinham entre um 20 e um 25% de desconto.

Ainda não sabemos quem fazia essas guitarras e a quem lhas comprava Canuto Berea, de onde saem esses tipos comerciais e qual o ganho do vendedor nesses preços. Mas entendemos que eram instrumentos de feitura comum, realizados por construtores que podiam enviar bom número de unidades a baixo custo e de diferentes qualidades.

Anúncio no jornal La Correspondencia Gallega do Sistema Terraza em 1900. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Anúncio no jornal La Correspondencia Gallega do Sistema Terraza em 1900. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

Entre os anos de 1877 e 1880, Miguel Alonso adquire, entre outros instrumentos, numerosas guitarras e bandurras de diversos tipos e preços, uma elevada quantidade de cordas para estes instrumentos, os métodos para bandurra de Lopez e Damas, e muitos acessórios. Os tipos de guitarras faturados em 3 de junho de 1880 eram: "blanca", "charol, "flor", "doradillo", "palo santo" e o curioso "para señora", uma clara marca de género. Cada um dos tipos define uma qualidade do instrumento que vai desde o mais básico até ao mais refinado. Esta variedade na oferta implica uma também variada e exigente demanda guitarrística na cidade de Vigo. Para mais detalhes sobre o conteúdo das faturas, vejam-se os anexos à tese A guitarra na Galiza (Rei-Samartim, 2020).

Da vida musical de Mariano Miguel Alonso sabemos que foi um músico violoncelista galego, proprietário do Teatro Breton de Vigo (Gaceta de Galicia, 1889), que nos primeiros anos do século XX acompanhou à filha Ascension, excelente pianista, em numerosos concertos na Galiza e no México (La Correspondencia Gallega, 1910). Já em 1880 Miguel Alonso era considerado um maestro de primeiro nível quando foi o encarregado de dirigir a orquestra e coro nas festas da Reconquista de 1809 em Ourense, e fazia parte em júris de concursos ao lado de Casto Sampedro, Marcial del Adalid e José Baldomir (El Heraldo Gallego, 1880; El Estudiante, 1880; Gaceta de Galicia, 1904). No seu armazém de música oferecia serviços o pianista e afinador Antonio Otegui (Faro de Vigo, 1880), pelo que deduzimos que entre 1877 e 1880 a loja tem estado ativa. Como veremos a continuação, é em 1880 que Andrés Gaos Espiro começa a fazer-se cargo da, esta sim oficial, sucursal de Canuto Berea em Vigo, no mesmo local em que estava a de Miguel Alonso que deveu deixar o ofício de comerciante para focar-se na interpretação, na direção e na docência.

Andrés Gaos Espiro

Nessa mesma rua do Príncipe n.º 17 teria servido entre 1880 e 1889 a sucursal oficial em Vigo de Canuto Berea Rodriguez, a cargo do seu cunhado Andrés Gaos Espiro, casado com Pilar Berea Rodriguez, respetivamente pai e mãe do professor, compositor e violinista Andrés Gaos Berea (Andrade, 2010, pp. 55-56; Crónica de Pontevedra, 1889). A sucursal tentou, já desde o início, realizar veladas musicais com os jovens instrumentistas vigueses como protagonistas, duas vezes por semana (El Correo Gallego, 1880):

Vigo 23.- Parece que en el almacen de música que representa en esta ciudad el Sr. Gaos; se reunirán dos veces por semana varios jóvenes amantes del arte para tocar algunas piezas de las más selectas; que seran escuchadas indudablemente con agrado por todos los que con más ó menos abundancia de conocimientos músicos, profesan culto á la música.
Plácenos mucho que el Sr. Gaos, sea tan galante con la juventud viguesa, y que su almacen de pianos pase por núcleo de reunion para los aficionados á la buena música.

Os anúncios de Canuto Berea-Andrés Gaos na Crónica de Pontevedra e noutros jornais foram refletindo a evolução do negócio e, ainda que as informações sobre pianos se incrementaram até apagar as dos outros instrumentos, especialmente em 1888, nunca chegaram à loucura competitiva acontecida em Compostela, e quase sempre incluíam a guitarra, acessórios e outros cordofones dedilhados. Lopez Cobas (2007, p. 277) regista uma série de cordofones vendidos por Canuto Berea, entre os 736 géneros diferentes, havia bandolins, guitarras, bandurras, tenores (alaúdes?) e bandolões.

Francisco Sanchez Puga

A fábrica de móveis da família Sanchez Puga inaugurou-se em 1878, em Vigo, na rua do Ramal, em 1881 transladou-se para a rua do Príncipe e, finalmente, em 1894 foi para a rua Velazquez Moreno, n.º 6 (El Pueblo Gallego, 1928a). É nesse último armazém onde se documenta a venda de instrumentos musicais, entre eles, muitos cordofones dedilhados. Aí é que deveu começar a relação com Canuto Berea. Segundo Garcia Armas (2022, p. 239) Francisco Sanchez Puga realizava numerosas encomendas ao corunhês.

Anúncio de Sanchez Puga no «Faro de Vigo» de 1903. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Anúncio de Sanchez Puga no «Faro de Vigo» de 1903. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

A importância que tinha para Sanchez Puga a venda de cordofones dedilhados fica de manifesto na publicidade (Faro de Vigo, 1903). A distinção entre instrumentos correntes e de qualidade, a menção aos violeiros, a publicidade de novos elementos técnicos, a variedade nos instrumentos indica que a atenção do armazém de Sanchez Puga aos cordofones dedilhados era uma das mais intensas que achamos na Galiza desta época.

Pieza enlazada

Em 1900 saía um anúncio reiterado durante um ano relativo a um sistema novo de afinação chamado de "Sistema Terraza" (La Correspondencia Gallega, 1900). No artigo em que tratamos o Bazar Helénico da Ponte Vedra vimos como o bazar fazia publicidade do ressoador "Terraza", que levava o nome do inventor, o cego e virtuoso da bandurra Carlos Terraza Vesga. Neste caso, o mesmo intérprete e inventor tinha desenhado anos antes um novo sistema de afinação que era o que Sanchez Puga anunciava no seu armazém em 1900 (Guitarra Arte Pulsado, 2015-2018).

O empório tinha ampliado em 1884 o seu âmbito de atuação à cidade da Ponte Vedra (La Opinión, 1884). Em Vigo, a Casa Sanchez Puga mobilou durante anos as instalações de numerosas entidades sociais como o Casino, o Recreo Liceo, bancos, comércios, os julgados, o Teatro Garcia Barbon, a Casa Olmedo. Assim o indica a bela publicidade que se anunciava no Catálogo de Vigo do ano 1922-1923, onde também aparecia uma nova mudança de endereço para a rua Marquês de Valladares, n.º 20, e a relação dos dous armazéns, o de móveis e o de música (Catálogo de Vigo, 1922-1923).

Fachada da Casa Sanchez Puga publicada no El Pueblo Gallego em 1928. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Fachada da Casa Sanchez Puga publicada no El Pueblo Gallego em 1928. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

O novo edifício construído na rua Marquês de Valladares, de várias alturas, foi o melhor momento do negócio de Sanchez Puga, que recebeu a licença municipal para construir em 1905 (Noticiero de Vigo, 1905b). Nessa nova loja, um dos primeiros centros comerciais da Galiza, juntaram-se tanto as secções de móveis e outros artigos quanto a de música, que até junho de 1907 se achava ainda no n.º 8 da rua Velazquez Moreno. O comércio foi um dos potenciadores do progresso industrial da cidade de Vigo e, como tal, foi celebrado na imprensa na semana do seu 50º aniversário (El Pueblo Gallego, 1928a).

Um dos empregados deste estabelecimento foi o músico César Rivera, que já tratamos noutro artigo. Em 1922 morre Francisco Sanchez Puga, sendo relevado pelos filhos. Anos mais tarde no armazém ainda se recebiam avisos para afinadores de pianos (El Diario de Pontevedra, 1926) e dous anos depois achamo-lo já diminuído na sua publicidade (El Pueblo Gallego, 1928b). No ano a seguir é a viúva de Francisco Sanchez Puga quem realiza a liquidação do comércio com o reclamo: "Vendemos a cualquier precio muebles, pianos, alfombras, lámparas, tapices y papeles pintados" (El Pueblo Gallego, 1929).

Nos bons tempos do armazém de música, além de cordofones dedilhados e pianos, também se vendiam discos. Sanchez Puga foi um dos correspondentes da empresa francesa Gramophone, cujo endereço social em 1903 estava em Barcelona. Outros correspondentes na Galiza, que recebiam tanto os gramofones quanto os discos, eram: na Corunha, Pedro Ferrer na rua Real, n.º 61, no Ferrol, Saturnino Montalbo rua Real, n.º 117, em Lugo, Francisco Nomdedeu na praça Santo Domingo, n.º 4, na Ponte Vedra, e Emilio Garcia (do Bazar Helénico) na rua Oliva, nº 1 (El Regional, 1903). Pouco depois Sanchez Puga anunciava a venda de música galega em discos para gramofone (Noticiero de Vigo, 1905a).

Ferrer foi comerciante na Corunha e produtor da primeira gravação sonora galega, a do coro galego Aires d'a terra (Almuinha, 2003, p. 38). Francisco Nomdedeu foi também um comerciante valenciano estabelecido em Lugo nos meados do s. XIX, casado com Demétria Rodriguez, cujo filho Rogélio foi também comerciante (Rivera, 2012; La Idea Moderna, 1914). Os outros dous são bem conhecidos nossos. Temos, portanto, entre os introdutores dos discos gravados na Galiza dous amigos da guitarra como Emílio Garcia Villarreal e Francisco Sanchez Puga, cujo grande labor ajudou a impulsar nas cidades de Vigo e da Ponte Vedra o estudo da guitarra e dos cordofones dedilhados.

Referências citadas

Almuinha, R. P. (2003). As gravações de Aires d'a Terra em 1904 ou o nascimento da história da música gravada na Galiza. Murguia(4), pp. 29-46.

Andrade Malde, Julio. (2010). Andrés Gaos. El gallego errante. Corunha: Vereda.

Catálogo de Vigo. (1922-1923). Francisco Sanchez Puga. Vigo: Editorial P.P.K.O.

Crónica de Pontevedra. (1889). Pianos Ronisch. Ponte Vedra: 24 de agosto, p. 4.

El Correo Gallego. (1880). Vigo 23. Ferrol: 27 de novembro, p. 3.

El Diario de Pontevedra. (1914). Hace hoy veinticinco años. Ponte Vedra: 14 de agosto, p. 2.

El Diario de Pontevedra. (1926). Pianos, afinación y reparación por Guillón (hijo). Ponte Vedra: 10 de junho, p. 3.

El Estudiante. (1880). Ponte Vedra: 14 de julho, p. 2.

El Heraldo Gallego. (1880). Programa. Ourense: 15 de maio, p. 4.

El Pueblo Gallego. (1928a). Industrias viguesas. Las bodas de oro de la casa Sanchez Puga. Vigo: 30 de agosto, p. 2.

El Pueblo Gallego. (1928b). Sanchez Puga. Vigo: 27 de novembro, p. 9.

El Pueblo Gallego. (1929). Ultimos dias. Vigo: 7 de setembro, p. 2.

El Regional. (1903). Lugo: 11 de dezembro, p. 4.

Faro de Vigo. (1879). Liceo de Vigo. Vigo: 1 de outubro, p. 3.

Faro de Vigo. (1880). Antonio Otegui. Vigo: 23 de julho, p. 3.

Faro de Vigo. (1903). Guitarras y bandurrias. Vigo: 4 de janeiro, p. 6.

Gaceta de Galicia. (1889). Santiago de Compostela: 22 de novembro, p. 1.

Gaceta de Galicia. (1904). Santiago de Compostela: 9 de novembro, p. 3.

Garcia Armas, Nilo Jesus. (2022). Obras gallegas en el Archivo Berea. La aportación a la vida musical coruñesa desde la segunda mitad del siglo XIX hasta las primeras décadas del siglo XX y el patrimonio musical gallego de la saga Berea. Tese de Doutoramento. Universidade da Corunha. 

Guitarra Arte Pulsado. (2015-2018). Resonador Terraza. Foro guitarrístico em Internet. 

La Correspondencia Gallega. (1900). Nuevo invento. Ponte Vedra: 3 de novembro, p. 3.

La Correspondencia Gallega. (1910). Ponte Vedra: 15 de janeiro, p. 2.

La Idea Moderna. (1914). Lugo: 15 de maio, p. 2.

La Opinión. (1884). Anúncio de Sanchez Puga. Ponte Vedra: 14 de agosto, p. 1.

Lopez Cobas, Lorena. (2007). Música y cultura en A Coruña. El caso de Canuto Berea Rodríguez (1836-1891). Memória de Licenciatura. Universidade de Santiago de Compostela.

Noticiero de Vigo. (1905a). Discos gallegos para gramófono. Vigo: 4 de abril, p. 4.

Noticiero de Vigo. (1905b). Dictámenes aprobados. Vigo: 24 de junho, p. 1.

Rivera, Paco. (2012). Operado. El Blog de Paco Rivera: 29 de novembro. 

 

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