Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaMaria Otero, Evangelino Taboada e a Memória
Isabel Rei Samartim

No passado domingo, 18 de junho de 2023, o departamento de Património da Deputação da Ponte Vedra, comissionado por Maria Ortega e Montse Fajardo, ofereceu uma sessão de Memória Histórica, organizada por alguém que é a alma de eventos fulcrais para a história da música galega, o mestre músico, José Luís do Pico Orjais.
Umas duzentas pessoas ateigaram a zona de entrada do edifício, entre as que havia muitos familiares de vítimas do regime franquista, pessoas colaboradoras, associações de memória, amizades e outras gentes do bem. Apresentava-se o livro intitulado
O grupo dos Dezas de Moneixas, que abria o ato de apresentação, também abre o livro, com um artigo sobre Xesus Froiz, promotor do grupo e militante galeguista assassinado em outubro de 1936. Depois, o grande pianista redondelano Alejo
No evento também participaram, no discurso e na música, o próprio José Luís do Pico
Presidindo a primeira fila estavam vários membros da família Taboada Otero. Maria Elena, a filha pequena de
Maria Otero e Evangelino Taboada, uma história para a lembrança
Evangelino Taboada Vazquez era de Lalim, vila onde aprendeu o ofício de relojoeiro. As suas várias capacidades levaram-no a ser um homem de ciência, requerido por Ramon Maria
Em julho de 1936 toda a família tinha saído de Vigo para Lalim, para passar uns dias de verão com os familiares dali. Então, um grupo de falangistas aproveitou para invadir a casa e o comércio deles. Na relojoaria da Rua do Príncipe assassinaram o Manuel, que era um empregado que tinha ficado a cargo do negócio enquanto a família estava de férias. Na casa, roubaram e queimaram tudo.
Convertida a sua vida num inferno, a família sobreviveu escondida em Lalim por três anos, até 1939. Ao voltar a Vigo tinham perdido tudo: casa, móveis, biblioteca, partituras, relojoaria, mercancia..., tiveram que reconstruir-se do nada passando grandes dificuldades. Como a família de Cândido, irmão de Evangelino, que se mudou para a Ponte Vedra. Ou a parte da família que sobrevivia em Compostela e na emigração. Passados os anos e animada por um dos seus netos, Maria Elena Taboada Otero escreveu um livro contando o que acontecera: Una historia para el recuerdo, que já vai pela segunda edição.
Um resumo do livro e das conversas com Maria Elena está contado no artigo intitulado “Maria Otero e Evangelino Taboada. Uma história para a lembrança”, dentro do livro A música represaliada (2023).
Una historia para el recuerdo
O prodígio da memória de Maria Elena Taboada fica patente nesse livro, que ela escreveu com intenção de que a família soubesse pelo que passaram o seu pai e mãe, e os seus irmãos. Mas, a vida é imprevisível, e assim como ela pode trazer momentos terríveis, também pode arranjar inesperadas boas venturas. Um dia de 2016, Maria Elena recebeu-me no seu apartamento de Vigo, com noventa anos de idade e uma saúde física e mental impoluta. Atendeu-me com paciência e até me deu de presente um exemplar do seu livro.
Mas, o momento fundamental daquela visita foi quando lhe mostrei a reprodução duma partitura para grupo de plectro, cujo original se conservava no Museu da Ponte Vedra. Era o Alalá e alvorada de Chané, arranjado em 1926 para cordofones pelo mestre músico estabelecido em Vigo,
Então, algo indefinível aconteceu naquele momento. Maria Elena, a mulher com a melhor memória que eu conheci em toda a minha vida, realizava a conexão imprescindível: Mas, então essa partitura é nossa!
Essa partitura é nossa
Sabemos muito pouco de Santos Rodriguez Gomez e ainda não temos documentos a comprovarem a amizade dele com a família de Evangelino Taboada, mas alguma ligação entre eles tinha de haver. Só temos certeza de que no ano que figura na capa da obra, 1926, tanto Rodriguez Gomez, quanto a família Taboada Otero, estavam em Vigo. E também sabemos da capacidade do relojoeiro Evangelino Taboada para se comunicar com as gentes ilustradas e progressistas da cidade. Para nós não há dúvida de que a partitura foi copiada para ser tocada pelo grupo familiar de Evangelino Taboada.
Porém, resulta um mistério o modo em como essa partitura chegou ao Museu da Ponte Vedra. Não há documentos a acreditarem a sua origem, o qual depois de saber a história da família, não parece tão estranho. O estranho seria que nos registos do arquivo aparecesse o nome de quem roubou a partitura e depois a doou ao museu. A falta de informação ao respeito faz-nos pensar que a pessoa envolvida na “salvação” da partitura, pois poderia ter sido queimada junto com a biblioteca e pertences familiares, foi alguém que sabia o que acontecera.
Alalá e alvorada de Chané
Esta obra foi estudada por Gomez e Cancela (2017, pp. 148-149) que informam de que foi estreada na Corunha em 26 de setembro de 1880. A partir daí viajou, foi conhecida e interpretada por outras agrupações como o coro La Oliva de Vigo (1888), o orfeão da Sociedade de Agricultores de Teis (1906), a versão de
O grupo de plectro da Sociedade Cultural de Rio Mau interpretou o Alalá e Alvorada em concerto, no dia 30 de janeiro de 1955 na sede da Aliança Francesa em Vigo (El Pueblo Gallego, 1955). Um ano mais tarde, em 8 de dezembro de 1956, a Tuna universitária de Compostela tocaria esta obra na sua apresentação, num recital em que também participou o guitarrista e autor de uma história inédita da guitarra, António Uxio
A obra de Chané começa com uma moinheira lenta, que coincide em forma, ainda que não em tonalidade, com a gaita anotada e publicada no século XVII por António de Santa Cruz, e no século XVIII com a gaita do manuscrito
Depois segue uma versão clara do 4º alalá do cancioneiro de Marcial
Se a justiça não faz Justiça, que a música faça algo de reparação
No ato do domingo, esta peça foi dedicada a todas as vítimas do franquismo, às famílias presentes e, em especial, a Maria Elena Taboada Otero, com um fundo agradecimento a ela e a todas as pessoas que nos legam a sua memória.
Referências bibliográficas
- A música represaliada. Unha foliada de memoria. (2023). Ponte Vedra: Deputação.
- El Pueblo Gallego. Rotativo de la mañana (1955). Actividad Cultural. El concierto en la Alianza Francesa. Vigo: 30 de janeiro, p. 4.
- Gomez, Sixto e Cancela, Alberto (2017). Chané. O nacemento da música popular galega. Compostela: aCentralFolque.
- La Noche. (1956). Presentación de la Tuna compostelana. Gaceta universitaria. Compostela: 8 de dezembro, p. 6.
- Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
- Orjais, José Luís do Pico e Rei-Samartim, Isabel. (2010). Ayes de mi país. O cancioneiro de Marcial Valladares. Baiona: Dos Acordes.
- Taboada Otero, Maria Elena. (2016). Una historia para el recuerdo, 2ª ed. Vigo: Edição
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