Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Maria Otero, Evangelino Taboada e a Memória

Isabel Rei Samartim
jueves, 29 de junio de 2023
A música represaliada © 2023 by Diputación de Ponte Fedra A música represaliada © 2023 by Diputación de Ponte Fedra
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No passado domingo, 18 de junho de 2023, o departamento de Património da Deputação da Ponte Vedra, comissionado por Maria Ortega e Montse Fajardo, ofereceu uma sessão de Memória Histórica, organizada por alguém que é a alma de eventos fulcrais para a história da música galega, o mestre músico, José Luís do Pico Orjais.

Umas duzentas pessoas ateigaram a zona de entrada do edifício, entre as que havia muitos familiares de vítimas do regime franquista, pessoas colaboradoras, associações de memória, amizades e outras gentes do bem. Apresentava-se o livro intitulado A música represaliada, publicado pela Deputação, a conter vinte e três artigos mais um prólogo e um epílogo, sobre diversas músicas e músicos que sofreram o vandalismo dos bárbaros. 

Pintura por Maria Elena Taboada Otero. Foto: Isabel Rei Samartim. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Pintura por Maria Elena Taboada Otero. Foto: Isabel Rei Samartim. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

O grupo dos Dezas de Moneixas, que abria o ato de apresentação, também abre o livro, com um artigo sobre Xesus Froiz, promotor do grupo e militante galeguista assassinado em outubro de 1936. Depois, o grande pianista redondelano Alejo Amoedo Portela tocou o passodoble Mondonhedo, da autoria do compositor Higino Cambeses, detido por organizar uma comissão de ajuda a presos e morto por suicídio em 1949. 

No evento também participaram, no discurso e na música, o próprio José Luís do Pico Orjais, a cantora galega Maria Manuela, a voz do Xurxo Souto e o som doce e redondo do bombardino do Félix Pimentel. Homenagearam-se, entre outr@s, Alexandre Bóveda, cantor da Polifónica da Ponte Vedra, a pianista Sofia Novoa, o compositor Carlos Lopez Garcia-Picos, @s componentes do coro Cântigas da Terra, a grande cantora Maria Valverde, a violinista Ana Maria Alvajar, o músico e agricultor José Gomez Avelaira. Merece a pena conferir o livro para comprovar que, se bem não estão tod@s @s que foram, são tod@s @s que estão.O ato era encerrado pelo grupo de música tradicional Xistra de Coruxo.

Presidindo a primeira fila estavam vários membros da família Taboada Otero. Maria Elena, a filha pequena de Maria Otero e Evangelino Taboada, que com seis anos de idade sofreu as consequências da violência exercida contra a sua família, estava ali marcando com dignidade mas sem rancor, como ela sempre insiste em dizer-nos, a memória dum terrível capítulo da nossa história. É graças a ela que conhecemos a história da partitura intitulada Alalá e alvorada de Chané, que também soou naquele evento numa versão para guitarra.

Maria Otero e Evangelino Taboada, uma história para a lembrança

Maria Otero Neira e Evangelino Taboada Vazquez com os dous primeiros filhos. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Maria Otero Neira e Evangelino Taboada Vazquez com os dous primeiros filhos. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

Evangelino Taboada Vazquez era de Lalim, vila onde aprendeu o ofício de relojoeiro. As suas várias capacidades levaram-no a ser um homem de ciência, requerido por Ramon Maria Aller, o nosso mais famoso astrónomo, e por muitos concelhos do nosso país onde ainda se podem ver os relógios que ele construía. Evangelino era um empresário próspero em Vigo, e era músico guitarrista como outros familiares e amigos seus que tocavam diversos instrumentos. A mulher, Maria Otero Neira, era também de Lalim e uma grande mãe e sanadora, “mãos de prata” lhe chamavam. Na casa deles em Vigo, com cinco filhos e uma filha, tocava-se música, liam-se livros todas as semanas, havia cultura, o comércio era visitado por intelectuais e havia tertúlias.

Em julho de 1936 toda a família tinha saído de Vigo para Lalim, para passar uns dias de verão com os familiares dali. Então, um grupo de falangistas aproveitou para invadir a casa e o comércio deles. Na relojoaria da Rua do Príncipe assassinaram o Manuel, que era um empregado que tinha ficado a cargo do negócio enquanto a família estava de férias. Na casa, roubaram e queimaram tudo.

Convertida a sua vida num inferno, a família sobreviveu escondida em Lalim por três anos, até 1939. Ao voltar a Vigo tinham perdido tudo: casa, móveis, biblioteca, partituras, relojoaria, mercancia..., tiveram que reconstruir-se do nada passando grandes dificuldades. Como a família de Cândido, irmão de Evangelino, que se mudou para a Ponte Vedra. Ou a parte da família que sobrevivia em Compostela e na emigração. Passados os anos e animada por um dos seus netos, Maria Elena Taboada Otero escreveu um livro contando o que acontecera: Una historia para el recuerdo, que já vai pela segunda edição.

Um resumo do livro e das conversas com Maria Elena está contado no artigo intitulado “Maria Otero e Evangelino Taboada. Uma história para a lembrança”, dentro do livro A música represaliada (2023).

Una historia para el recuerdo

Maria Elena Taboada Otero na juventude do após-guerra. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Maria Elena Taboada Otero na juventude do após-guerra. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

O prodígio da memória de Maria Elena Taboada fica patente nesse livro, que ela escreveu com intenção de que a família soubesse pelo que passaram o seu pai e mãe, e os seus irmãos. Mas, a vida é imprevisível, e assim como ela pode trazer momentos terríveis, também pode arranjar inesperadas boas venturas. Um dia de 2016, Maria Elena recebeu-me no seu apartamento de Vigo, com noventa anos de idade e uma saúde física e mental impoluta. Atendeu-me com paciência e até me deu de presente um exemplar do seu livro.

Mas, o momento fundamental daquela visita foi quando lhe mostrei a reprodução duma partitura para grupo de plectro, cujo original se conservava no Museu da Ponte Vedra. Era o Alalá e alvorada de Chané, arranjado em 1926 para cordofones pelo mestre músico estabelecido em Vigo, Santos Rodriguez Gomez, que assinava na primeira página. Até aí tudo normal. Mas o caso é que a mesma pessoa que escrevera o título e o compositor, que imaginamos tenha sido o próprio Rodriguez Gomez, anotou que a partitura era propriedade “de Evangelino Taboada”.

Então, algo indefinível aconteceu naquele momento. Maria Elena, a mulher com a melhor memória que eu conheci em toda a minha vida, realizava a conexão imprescindível: Mas, então essa partitura é nossa! 

Essa partitura é nossa

Capa da partitura "Alalá e Alvorada", propriedade de Evangelino Taboada. Fonte: Arquivo do Museu da Ponte Vedra. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Capa da partitura "Alalá e Alvorada", propriedade de Evangelino Taboada. Fonte: Arquivo do Museu da Ponte Vedra. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

Sabemos muito pouco de Santos Rodriguez Gomez e ainda não temos documentos a comprovarem a amizade dele com a família de Evangelino Taboada, mas alguma ligação entre eles tinha de haver. Só temos certeza de que no ano que figura na capa da obra, 1926, tanto Rodriguez Gomez, quanto a família Taboada Otero, estavam em Vigo. E também sabemos da capacidade do relojoeiro Evangelino Taboada para se comunicar com as gentes ilustradas e progressistas da cidade. Para nós não há dúvida de que a partitura foi copiada para ser tocada pelo grupo familiar de Evangelino Taboada. 

Porém, resulta um mistério o modo em como essa partitura chegou ao Museu da Ponte Vedra. Não há documentos a acreditarem a sua origem, o qual depois de saber a história da família, não parece tão estranho. O estranho seria que nos registos do arquivo aparecesse o nome de quem roubou a partitura e depois a doou ao museu. A falta de informação ao respeito faz-nos pensar que a pessoa envolvida na “salvação” da partitura, pois poderia ter sido queimada junto com a biblioteca e pertences familiares, foi alguém que sabia o que acontecera.

Alalá e alvorada de Chané

Primeira página do "Alalá e Alvorada" de Chané, arranjada por Santos Rodriguez Gomez. Fonte: Arquivo do Museu da Ponte Vedra. © 2023 by Isabel Rei Samartim.Primeira página do "Alalá e Alvorada" de Chané, arranjada por Santos Rodriguez Gomez. Fonte: Arquivo do Museu da Ponte Vedra. © 2023 by Isabel Rei Samartim.

Esta obra foi estudada por Gomez e Cancela (2017, pp. 148-149) que informam de que foi estreada na Corunha em 26 de setembro de 1880. A partir daí viajou, foi conhecida e interpretada por outras agrupações como o coro La Oliva de Vigo (1888), o orfeão da Sociedade de Agricultores de Teis (1906), a versão de Manuel Quiroga e Martha Leman (1925). Foi obra obrigada no certame de coros galegos de 1928 celebrado no Carvalhinho. Depois viria a versão de Rodriguez Gomez para orquestra de plectro (1926) e documentamos mais duas interpretações na década de 1950, realizadas por grupos de cordofones (Rei-Samartim, 2020, pp. 1629-1630).

O grupo de plectro da Sociedade Cultural de Rio Mau interpretou o Alalá e Alvorada em concerto, no dia 30 de janeiro de 1955 na sede da Aliança Francesa em Vigo (El Pueblo Gallego, 1955). Um ano mais tarde, em 8 de dezembro de 1956, a Tuna universitária de Compostela tocaria esta obra na sua apresentação, num recital em que também participou o guitarrista e autor de uma história inédita da guitarra, António Uxio Mallo, que interpretou o Capricho árabe de Francisco Tárrega, havendo também um outro duo de violino e guitarra a cargo dos intérpretes Pin e Orol (La Noche, 1956).

A obra de Chané começa com uma moinheira lenta, que coincide em forma, ainda que não em tonalidade, com a gaita anotada e publicada no século XVII por António de Santa Cruz, e no século XVIII com a gaita do manuscrito Saldívar, de Santiago de Múrcia, e finalmente torna a aparecer no século XIX, na moinheira publicada por Campo Castro que se conserva no fundo Pintos Fonseca, também no Museu da Ponte Vedra. 

Depois segue uma versão clara do 4º alalá do cancioneiro de Marcial Valladares de 1865, Ayes de mi país, publicado em 2010 (Dos Acordes). E continua com uma versão da alvorada de Rosalia, cujos motivos se acham em várias das alvoradas recolhidas no cancioneiro de Casto Sampedro, publicado em 1943, mas realizado entre o último terço do século XIX até à morte do seu autor. Por último, Chané incorporou uma melodia a modo de evocação de alalá improvisado com adorno de gaita, que unido ao uso dos intervalos de sexta confere à peça um toque solene e nobre antes da coda harmónica final.

Se a justiça não faz Justiça, que a música faça algo de reparação

No ato do domingo, esta peça foi dedicada a todas as vítimas do franquismo, às famílias presentes e, em especial, a Maria Elena Taboada Otero, com um fundo agradecimento a ela e a todas as pessoas que nos legam a sua memória. 

Referências bibliográficas
  1. A música represaliada. Unha foliada de memoria. (2023). Ponte Vedra: Deputação.
  2. El Pueblo Gallego. Rotativo de la mañana (1955). Actividad Cultural. El concierto en la Alianza Francesa. Vigo: 30 de janeiro, p. 4.
  3. Gomez, Sixto e Cancela, Alberto (2017). Chané. O nacemento da música popular galega. Compostela: aCentralFolque. 
  4. La Noche. (1956). Presentación de la Tuna compostelana. Gaceta universitaria. Compostela: 8 de dezembro, p. 6.
  5. Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela. 
  6. Orjais, José Luís do Pico e Rei-Samartim, Isabel. (2010). Ayes de mi país. O cancioneiro de Marcial Valladares. Baiona: Dos Acordes.
  7. Taboada Otero, Maria Elena. (2016). Una historia para el recuerdo, 2ª ed. Vigo: Edição 
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