Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaRicardo Freire Blanco, o virtuoso de Cedeira (1)
Isabel Rei Samartim
À bela Mabel e suas filhas guitarristas
Tomei conhecimento deste guitarrista galego, Ricardo Freire Blanco (Cedeira, 1934-1998) ao entrar em contato com a sua filha, também guitarrista, escritora e diretora de audiovisual, Alícia Freire Vera. Depois tive a honra de fazer uma apresentação da Guitarra na Galiza no auditório municipal de Cedeira. A primeira entrevista com Alícia foi em linha, através duma conhecida rede social, depois fui visitá-la em Cedeira e, mais tarde, conheci a mãe e a irmã, Mabel e Rosário (Charo), no Ferrol, cidade onde moram atualmente e conservam o acervo familiar.
A tragédia do mar
Ricardo do lugar de Vila Cacim (Cedeira) tinha fama de dotes musicais. Daí que o filho Francisco, pai de Ricardo, acabasse na banda de música de Cedeira a tocar o bombardino.
Mas, bem cedo a vida não iria deixar as cousas fáceis. Ricardo com dous anos de idade, a irmã Concepcion (Concha) com três anos, e a mãe esperando o filho Francisco (Paco), perderiam o pai em dia 6 de abril de 1936, num trágico acidente marítimo. O barco pesqueiro San Andres sofria uma terrível explosão na caldeira ao pouco de sair do porto de Cedeira, cobrando a vida de seis marinheiros. Um deles era o patrão do barco, outro foi o pai do nosso guitarrista (El Ideal Gallego, 1936).
A maldade fascista
Assim, a viúva Eulália Blanco, costureira profissional, ficou sozinha ao cuidado das três crianças passando todos os trabalhos que damos imaginado e a poucos meses de sofrer uma outra explosão, a da guerra provocada pelos militares golpistas comandados por um que era do Ferrol, mas não o merecia.
Manuel Vergara Villar, Manolo, amigo da alma de Ricardo Freire, ficaria também órfão em poucos meses ao se converter em filho de represaliado, sendo o pai assassinado pelos fascistas rebeldes em 25 de agosto. Recebemos as informações de Manolo Vergara que serviram para elaborar este artigo era 2021 e passava dos 90 anos. Faleceu há poucos meses, por isso enviamos desde aqui um profundo agradecimento e as nossas condolências à família.
Os dous amigos músicos e, de novo, uma barbearia
Ricardo vivia na Rua Real de Cedeira, com a sua mãe, a irmã e o irmão mais novo. Perto da casa havia uma barbearia onde ensaiava um grupo de plectro. Dizia Manolo Vergara que inicialmente os donos do negócio eram os irmãos Alberto e José Espantoso (Pantuto), que eram músicos da conhecida por Banda Nova (Suarez, 2008, p. 127). Mas, na época em que os dous amigos frequentavam a barbearia, esta pertencia ao senhor Hilário Cheda.
O grupo era um quarteto formado por Manolito de D. Manuel na guitarra, Hilário no alaúde, Manuel Rodriguez no bandolim e Carinho na bandurra. Um conjunto bem popular de instrumentos de plectro em ativo entre 1948 e 1950. Estes quatro instrumentos foram os básicos dentro dos conjuntos de plectro galegos, a partir daí o número de elementos podia ampliar-se incluindo violinos, violoncelos, contrabaixos e flautas, coros e também números de dança. Neste caso temos um quarteto básico e popular na vila de Cedeira.
Dava-se o caso de que perto da casa de Manolo Vergara, onde vivia com a mãe Josefa e a irmã Carminha, residia o músico Eduardo Lourido Iglesias (Pardela), irmão de Manuel Lourido Iglesias, também músico e professor. Ricardo Freire estudou solfejo e percussão com Eduardo Lourido por um tempo. O tio Ricardo ‘Paxarinha’, que era músico da Banda de Infantaria da Marinha, deu de presente ao sobrinho uma caixa, porque passava o dia a batucar com baquetas construídas por ele mesmo. Este início na percussão de Ricardo Freire era acompanhado também pela guitarra graças ao próprio Manolo Vergara, que tinha o método de Tárrega e o costume de praticar às tardes depois do trabalho.
Ricardo, através dos contatos da mãe Eulália como costureira costureira de alto nível, foi contratado no serradoiro da empresa Industrial Madeireira, conhecido por Serra Nova, que estava gerida por Conrado Pita. Ali realizou os primeiros trabalhos com a madeira. Manolo arranjou emprego também noutro serradoiro, o Serra Velha. Os dous saíam às 18h e depois da merenda sempre se encontravam na casa de Manolo, lugar onde deveu nascer o romance de Ricardo com a guitarra.
Com a percussão o jovem Ricardo Freire socializava na banda de música, mas à guitarra, produto dessa bela amizade, acabaria por dedicar-lhe a vida inteira.
Mais guitarristas populares em Cedeira
Manolo
Assim, os irmãos Manuel e Hilário Cheda, este último o dono da barbearia, eram guitarristas. Como eram também os irmãos Tomás e Manolo Vergara, o nosso informante. Bem como Manuel Garcia Jimenez (1924-1988), filho de Francisca Jimenez, que foi uma pianista, regente de coros e organizadora de concertos em Cedeira. Seu filho estudou guitarra, a carreira de Comércio e foi empregado de banca. Foi regente de diversos coros, compositor, integrante de vários grupos musicais tocando o alaúde e o acordeão, e professor na Escola Municipal de Música (Suarez, 2008, pp. 100-101). Noutro artigo trataremos mais a história da guitarra em Cedeira, por agora continuamos com a vida do que foi o seu máximo expoente, Ricardo Freire Blanco.
De Cedeira para o Uruguai
Em 1952 emigra a família de Ricardo Freire para Montevideu. Manolo Vergara lembrava a sua última noite em Cedeira, no jantar de despedida, a desolação por perder o amigo, a última conversa daquela noite. O relato de Manolo Vergara sobre Ricardo Freire está cheio de carinho e lembranças que unicamente tem alguém que o conheceu toda a vida. Só voltariam a ver-se vinte anos mais tarde, quando em 1974 Ricardo regressou à vila natal casado com Iris Mabel Vera Gutierrez, nascida no Uruguai, e as duas filhas, Rosário e Alícia.
O despertar em Montevideu
Nada mais chegar no Uruguai, o jovem Ricardo Freire viu todas as possibilidades que oferecia uma grande e borbulhante capital da América Latina. E soube que tinha que dedicar-se à música e que aquela dedicação teria a sua recompensa. Estudou a carreira de música no Conservatório ‘Ravel’ de Montevideu, onde conseguiu o Diploma de Professor de Guitarra em 1962, com a qualificação de “muy bueno - sobresaliente”. Nesse mesmo ano, em 25 de agosto, casou com Iris Mabel Vera Gutierrez, nascida em Montevideu em 1941.
Além dos seus estudos oficiais, Ricardo preocupou-se pela continuidade na sua formação guitarrística e procurou mais professores, como Júlio Martinez Oyanguren (1901-1973), guitarrista, compositor e engenheiro mecânico nascido em Durazno (Uruguai) de quem Ricardo aprendeu e desenvolveu muitas qualidades: o timbre cuidado, a constância no estudo e o interesse pela construção de guitarras. Alícia Freire lembra que Oyanguren disse para o seu pai ao vê-lo tocar: “Usted le va a dar un susto al mundo”. Oyanguren também deixaria uma obra escrita e dedicada ao seu aluno galego.
Ricardo Freire também procurou os ensinamentos da longeva guitarrista montevideana Olga
A carreira como concertista de Ricardo Freire Blanco incluiu várias apresentações em Montevideu, em lugares de prestígio daquela época como a Casa de Salto, em 13 de setembro de 1963. Também no clube El Viejo Pancho, nome que homenageava o poeta nacional do Uruguai, José Alonso Trelles (1857-1924), natural de Ribadeu. No Conservatório América ofereceu também vários concertos. Ricardo Freire era sócio da AGADUR, Asociación General de Autores del Uruguay, com a que arranjou numerosos concertos e a aparição em publicidade televisiva. A família lembra que tocou a Milonga de Pierri (José Pierri Sapere) num desses anúncios televisivos. Como compositor tem obras originais e arranjos para guitarra que se tratam no próximo artigo.
No mês de maio de 1961 Ricardo Freire iniciava um caderno onde ia anotando o nome, contato e data de início de cada um dos seus alunos e alunas. Em julho de 1966, o caderno continha mais de 200 nomes de pessoas de todas as idades, que tinham assistido ou ainda assistiam as aulas de Ricardo Freire. Também foi professor oficial no Conservatório América durante vários anos até 1967, quando começou a construir guitarras. Ali conheceu a que seria sua esposa, Mabel Vera, estudante de piano no conservatório.
A construção de guitarras
Nesse tempo, e como complemento aos concertos e à docência, o guitarrista deu liberdade ao seu espírito criador e construtor e começou a construir guitarras. A sua produção era alta. Criou a sua própria marca e chamou-lhes Cedeira, o nome da vila natal. A demanda de guitarras no Uruguai da época era muito grande. A Casa Palacio de la Música, uma conhecida loja de música da capital uruguaia, interessou-se por comprar-lhe todas as guitarras em troca de mudar-lhes de nome e as chamar como a empresa, ao que Ricardo Freire se negou. Logo depois chegou o ano de 1973, convulso para a política de toda América Latina e também para o Uruguai, e a família começou a pensar em regressar à Galiza.
A exigência na construção dos instrumentos, pois também restaurou um piano reconstruindo todas as partes de madeira, era a mesma que Ricardo Freire tinha para a interpretação e de igual modo se comportava com os seus desenhos. A família guarda vários cadernos de desenho com rascunhos, práticas e provas, até dar com as desejadas textura, forma e expressão. A sua composição espacial e musical guardam uma relação clara e deixam ver um extremo cuidado pelas proporções e a procura dum ideal de beleza.
Continua no próximo artigo o retorno à Galiza de Ricardo Freire e uma descrição da sua coleção de partituras.
Referências bibliográficas- Acervo da família Freire-Vera.
- El Ideal Gallego. (1936). La catástrofe marítima de Cedeira. Corunha: 9 de abril, p. 3.
- Informações de Charo e Alícia Freire, Mabel Vera e Manolo Vergara amavelmente facilitadas à autora deste artigo.
- Suárez Aneiros, José António. (2008). A música popular en Cedeira e no seu contorno. Corunha: Deputação Provincial.
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