Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaRicardo Freire Blanco, o virtuoso de Cedeira (2)
Isabel Rei Samartim
O retorno a Cedeira
A volta à terra tinha para Ricardo Freire uma parte de alegria, de alívio por estar na sua casa, ver a família e as amizades, voltar a conviver com aqueles que considerava seus. Mas, era o ano de 1974. O retorno também trouxe os piores anos da vida para ele e para a sua família. As duas filhas, ainda crianças, habituadas às possibilidades e recursos da capital uruguaia mergulharam numa Cedeira constrangida por 40 anos de franquismo que ainda não tinham acabado.
No emocionante livro intitulado Sobre el muro hasta que escampe, a filha Alícia Freire Vera relata como foi a chegada dela e da irmã, a sua adaptação ao mundo galego daqueles tempos, depois de ter vivido o esplendor montevideano, sendo filhas dum apaixonado artista (Freire, 2005-2019, p. 16):
Que empiece la música. Es un Aria de Bach lo que suena. Interpretado a guitarra clásica por Roberto [Ricardo] que a las ocho de la mañana ya lleva dos horas concentrado en sus partituras.
El sol que entra por el balcón de la izquierda ilumina el mástil del instrumento, formando una aureola de luz que hace honor a los arpegios casi divinos que emanan de las cuerdas. Un Aria de Bach que inunda la vieja casa desde primeras horas de la madrugada.
Es un domingo primaveral. Alma [Mabel, a mãe] prepara el desayuno.
Beatriz [Alícia] está despierta siguiendo mentalmente los compases conocidos desde su cama mientras contempla a través de la ventana los fuertes rayos de luz que penetran entre las ramas de los árboles.
A limpa e clara narração de Alícia Freire ilustra de maneira perfeita os primeiros momentos da família na Galiza, depois da saída do Uruguai, e fornece informações muito valiosas ao longo de todo o livro (p. 19):
Alma, Roberto, Camila y Beatriz [Mabel, Ricardo, Rosário e Alícia] pasean por los jardines antiguos. El día es luminoso. Las niñas van delante, dejando um rastro de migas de pan para las palomas. Ellos van detrás hablando de sus cosas. Roberto le va contando a Alma cómo era todo aquello cuando él era niño, antes de que la hambruna los hiciera emigrar. En su voz se nota cierto orgullo de su tierra, empañado de un misterioso recelo. Todavía no sabe a qué. A lo que fue, a lo que vino o a lo que vendrá...
Os receios deviam ser sobre o futuro, e bem fundados, pois a vida não seria fácil na Galiza daqueles tempos. A família tinha a impressão de que a mudança de Montevideu a Cedeira não ajudava ao desenvolvimento da arte e da música do pai. Depois de trabalhar um tempo num barco mercante que distribuía vinho na costa mediterrânea, Ricardo Freire voltou e moraram no Ferrol entre 1976 e 1977. Ali recuperou as aulas de guitarra e teve vários alunos, entre eles, Álvaro Lamas que viu como construía a sua última guitarra. Esse foi o ano em que também restaurou um piano antigo que tinha adquirido em Betanços.
O matrimónio logo começou a ver que a profissão de guitarrista, os concertos, as aulas e a construção de instrumentos, não seriam o suficiente para o bem-estar familiar. De forma que, com o tempo, Mabel aprovou as oposições ao Concelho de Cedeira, onde se estabeleceram e, depois de procurar noutras áreas de trabalho, Ricardo começou a se integrar num âmbito que não era para ele, mas que desde sempre tinha alimentado tantas famílias na vila: o mar.
Ricardo Freire, patrão de barco
Antes de empreender o que seria seu último caminho, Ricardo Freire insistiu em trabalhar como músico e deu aulas de guitarra em várias localidades galegas: Ferrol, São Sadurninho, Moeche, Ortigueira, Carinho e, naturalmente, Cedeira. Mas, ao mesmo tempo, os diplomas e acreditações que adquiriu naqueles anos deixam ver uma maré inevitável que o afastou da vida profissional na música, ainda que nunca deixou de tocar e ensinar guitarra às filhas. A sua inteligência natural permitia-lhe ter sucesso naquela empresa de não se dedicar profissionalmente à música. Quando o desespero crescia, Mabel lembrava-lhe que no Uruguai Ricardo Freire era tratado de Maestro.
Em 1975 obtinha o Diploma de Técnico Montador Sanitário. Em 1976, tirava a Carta de Técnico de rádio, transistores e televisão do Instituto Hispano Americano. Em 1977, tirava a Carta de Patrão de Embarcações Desportivas da Subsecretaria da Marinha Mercante. Em 1978 obtinha o Certificado de Competência de Marinheiro da Comandância do Ferrol e a Libreta de inscrição marítima. Em 1980 ganhava o Diploma e a Carta de Motorista Naval de Três Grupos de Motor (explosão, diesel e semidiesel). E no mesmo ano, o Diploma e Carta de Patrão de Pesca Local, no Ferrol. Em 1984 entrava como sócio da Confraria de Pescadores de Cedeira.
Os últimos anos de Ricardo Freire Blanco decorreram em Cedeira, na amadíssima companhia da sua mulher e filhas. Por palavras da filha Alícia, ele teria o que hoje conhecemos por “altas capacidades”. Observava tudo ao seu redor aprendendo técnicas e buscando soluções. Morreu em 1998 e foi enterrado no dia do seu 64º aniversário. A família recebeu numerosas cartas de condolências de amizades, antigos alunos e da Câmara Municipal de Cedeira.
O acervo familiar
Mabel Vera Gutierrez e as duas filhas, Rosário (Charo) e Alícia, conservam o legado do guitarrista, áudios, vídeos, documentos, fotografias, cadernos de notas, cadernos de desenho, planos de construção, e a enorme partitoteca com todo o tipo de música para guitarra. A filha Charo realizou uma cuidada relação das obras do fundo que foi muito útil para a sua análise. Um tesouro com música do repertório clássico europeu e também da América Latina publicada nas décadas centrais do século XX.
Entre os documentos oficiais, textos, desenhos, recibos e outros objetos como as teclas de ébano do piano que restaurou, ou os carimbos com que fazia as etiquetas das guitarras, a família de Ricardo Freire conserva umas seiscentas obras para guitarra, editadas e manuscritas, boa parte delas publicadas nas décadas centrais do século XX. Mas também há partituras mais antigas e outras muito recentes.
Repertório europeu
As obras das décadas centrais do século XX formam dous grandes grupos: 1) as do repertório europeu que estavam a ser publicadas pelas editoras que conhecemos aqui, a UME, a Schott, etc., originais ou arranjos de Francisco Tárrega, Andres Segóvia, Miquel Llobet, Emili Pujol, Graciano Tarragó, Venancio Garcia Velasco, Nicolás Alfonso, Heinz Teuchert, John W. Duarte, entre outros. Das obras de Albeniz, Granados e Bach, Ricardo Freire podia ter até três ou quatro versões diferentes, e mesmo a sua própria. Ele conhecia desde os violistas do século XVI até aos últimos arranjos que publicava Segóvia.
Julian Arcas, Moreno Torroba, Luis Sanchez Granada, Jaume Bosch, e também Beethoven, Bertini, Bizet, Boccherini, Brahms, Corbetta, Coste, Debussy, Diabelli, Leo Brouwer, Carcassi, Carulli, Sors, Aguado, Mertz, Grieg, Gounod, Giuliani, Gragnani, Gerau, Händel, Milan, Matiegka, Mendelssohn, Malats, Manjon, Mozart, Narvaez, Oudrid, Paganini, Rameau, Roncalli, Sainz de la Maza, Turina, Valderrábano, Vivaldi, Visée, Weiss, Iradier, de todos eles há música na partitoteca de Ricardo Freire Blanco.
Entre os autores menos conhecidos hoje, mas que estavam a ser publicados ou republicados naquela altura está Bartolomé Calatayud, Federico Cano, Antonio Cano, Manuel Diaz Cano, Francesc de Paula Soler, Tomás Damas, Francisco Cimadevilla. Esta é uma coleção com características que nos são mais próximas e pode guardar semelhanças com as coleções de muit@s guitarristas atuais.
Repertório latino-americano
O segundo grupo de partituras são as correspondentes ao repertório latino-americano e pertencem à etapa entre 1952 e 1973 que Ricardo Freire passou em Montevideu. A música de Agustin Barrios, António Lauro, Gaspar Sagreras, J. Aguilar, Julian Aguirre, Eduardo Mateo, José Pierri Sapere, Martinez Oyanguren, António Sinópoli, Bianqui Piñero, Isaías Savio, Nicodemo Casuscelli, Leon Block, Abel Fleury, Pachacho Céspedes, Justo T. Morales, José Pierri Sapere, Pedro Antonio Iparraguirre, tangos, milongas, canções, guajiras e zamacuecas misturam-se com as partituras de música europeia, quase todas publicadas e vendidas em países da América Latina, adquiridas por Ricardo Freire no Uruguai. As mais modernas, desde o período de 1974 a 1998 já foram adquiridas na Galiza.
Obras originais e arranjos de mulheres guitarristas e compositoras
O mais chamativo e lindo é o conjunto de mulheres guitarristas presentes na coleção, autoras de obras originais ou de transcrições para guitarra como Maria Luisa Anido, Margarita Romeu, Celia Gaggero Robledo, Elisa Bertin, Lupe de Azpiazu, Susana Gallucci e Vahdah Olcott-Bickford.
A coleção tem autores e autoras europeias com repertório americano como Domingo Prat. José de Azpiazu e a filha Lupe, e autoras e autores americanos com repertório europeu, como o método de Aguado e a música espanhola revisada e até composta por António Sinópoli, os estudos de Tárrega revisados por Bianqui Piñero, ou as transcrições de grandes compositores europeus da Vahdah Olcott-Bickford.
Também há uma composição de Abel Fleury, Lejania. Estilo popular argentino, dedicada à guitarrista Consuelo Mallo Lopez, menina prodígio galego-argentina a quem também Eduardo Blanco Amor dedicou o poema Una lágrima, de Tárrega (Rei-Samartim, 2020, p. 471).
Editoras e lojas nas partituras de Ricardo Freire
Sempre atento às novidades, desde Montevideu chegava música da Europa às diversas lojas da cidade: Casa Beethoven, Palacio de la Música, Julio Mousqués, Casa Praos. Ricardo Freire tinha música das editoras Romero y Fernandez (Buenos Aires), Casa Sotero e Arthur Napoleão S.A. e a Ricordi Brasileira (São Paulo, Brasil), Julio Korn (Buenos Aires), Ediciones Musicales Mundo Guarani (Buenos Aires) e aparece como editora e loja de música a Casa Nuñez e a Antigua Casa Nuñez levada por Diego Gracia, de que temos falado já nesta série. Agora sabemos que as partituras do galego Francisco Nuñez Rodriguez e seus sucessores, publicadas na Argentina, chegavam até Montevideu.
Depois, na etapa de regresso à Galiza há música com carimbos de três grandes lojas galegas: Musical Villanueva de Vigo, Montalbo do Ferrol e Puig e Ramos (continuadores de Canuto Berea) da Corunha.
(Continua no próximo artigo)
Referências bibliográficas
- Acervo da família Freire-Vera.
- Informações de Charo e Alícia Freire, Mabel Vera e Manolo Vergara amavelmente facilitadas à autora deste artigo.
- Freire Vera, Alícia. (2005-2019). Sobre el muro hasta que escampe. Ed. da autora.
- Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
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