Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaPleitos por uma guitarra
Isabel Rei Samartim

Neste artigo abordarei brevemente três dos processos judiciários decorridos ao longo do tempo na Galiza, motivados pela possessão, roubo ou empréstimo de guitarras.
Estes litígios dos séculos XVI, XVIII e XIX, conservados no Arquivo do Reino da Galiza, na Corunha, ilustram bem o interesse e a familiaridade com que as gentes galegas tratavam o instrumento.
Os dous primeiros casos oferecem mais dados sobre o uso e costumes populares da guitarra, entrementes o terceiro ilustra sobre o seu uso no âmbito da nobreza e das profissões liberais.
Por último, há um componente de género
tão evidente em todos que é preciso comentar, bem como elementos sociopolíticos
ilustradores de cada uma das épocas.
Pleito de 1565
Nesse ano, uma mulher foi acusada em Compostela
de manter uma casa de prostituição que, segundo o procurador, causava tumultos,
ruídos e incómodos vários aos vizinhos da mesma rua, visto que os homens que a
frequentavam eram muitos, levavam espadas, pedras e outras armas, alvorotavam na
rua, protagonizavam pelejas e costumavam tanger "biuelas, guitarras,
cantando y deziendo cantares deshonestos e suzios" (Arquivo do Reino de Galicia,
fundo da Real Audiencia, cota:
29.219/19).
A distinção entre ‘violas’ e ‘guitarras’
sugere, como já fazia Vasco da Ponte ao falar sobre o Conde de Lemos
guitarrista, que umas podiam ser violas de arco e as outras violas de mão, já
chamadas de guitarras. Esta distinção também reflete que as biuelas (violas), forem de arco ou de
mão, eram usadas popularmente e sem distinção social das guitarras. Um outro
dado importante é a constatação do uso de guitarras/violas de mão para o acompanhamento
de cantares burlescos. Um século atrás Tinctoris (ca. 1480, IV.v) mencionava mulheres
a acompanhar o canto com guitarra na Catalunha:
Ghiterre autem usus propter tenuem eius sonum rarissimus est. Ad eamque multo sepius Catalanas mulieres carmina quedam amatoria audivi concinere quam viros quic piam ea personare
Isso tudo unido a que as primeiras
representações de guitarristas com o novo sistema de ataque sobre as cordas situam-se
no século XIV, permite afirmar que o sistema de acordes e a técnica do rasgado
são bem mais anteriores do que habitualmente se indica nas histórias da
Guitarra, que costumam identificar-se com a publicação dos primeiros alfabetos
como o de Montesardo (1606).
A mulher acusada no processo judicial declarava-se
padeira, o homem dela era pedreiro. Manifestavam-se pobres e com dificuldades
para conseguir manter uma família com dous filhos, daí o complemento com a casa
de prostituição. É esta uma estampa social de interesse quanto à vida do povo
compostelano nos meados do século XVI. A anedota foi o produto de uma situação
machista, onde a prostituição aparecia como complemento do salário familiar e a
acusação baseava-se nos tumultos que causava essa prática sem qualquer intenção
de remediar a injustiça da pobreza das mulheres.
Pleito de 1778
Com data de 29 de dezembro de 1778 aconteceu um
outro pleito nos Julgados da Província de Betanços, concretamente, no Julgado
da vila de Ferrol e da Granha (Arquivo do
Reino de Galicia, cota: 4983/21), em que um marinheiro catalão, Juan
Domenech, foi contra uma mulher da Granha (Minho, comarca do Norte da Galiza) motivado
pela ocultação duma viola que lhe fora arrebatada três dias antes por outros
marinheiros do seu mesmo barco.
O pleito indicava que Domenech era
"residente en esta playa", que era dono da viola roubada ("le
quitaron la vihuela de su uso amenazandole con armas") e que, com ajuda dum
policial, demonstrou que a viola se achava em baixo da cama da senhora Maria
del Carmen, também conhecida pela alcunha de Falperra. Esta Maria poderia ser
uma prostituta da Granha que aceitasse objetos em pagamento do serviço. A
viola, chamada de "alaxa" (alfaia, joia) no texto do pleito, poderia
ter servido para esse fim.
Pelo mesmo motivo parece evidente que Juan
Domenech solicitou os serviços da mesma mulher e por causa disso descobriu a
viola roubada em baixo daquela cama. Sem ter em conta o milagre que lhe deve
ter parecido a Juan Domenech tal descoberta, e tendo a sua guitarra de volta, é
devido ressaltar que por causa do pleito que ele colocou à Maria del Carmen (e
não aos ladrões da guitarra) esta foi detida, interrogada e condenada a pagar
80 reais pelos custos processuais.
Pleito de 1813-1817
Era o ano de 1811 e a Condessa Viúva de
Oleiros, com residência na cidade de Compostela, partilhava morada com o seu
cunhado Rafael das Seixas quando este ficou doente. Devido à gravidade da
doença, o Seixas solicitou os serviços do médico cirurgião do Exército, o
senhor Cristóbal Baradat. Como não podia afrontar as despesas do tratamento, o doente
resolveu emprestar ao médico, por um período de dous meses, uma guitarra ‘de
estimação’ que ele usava, em pagamento provisório e até o médico receber uma
outra guitarra que o Seixas afirmava ter encarregado.
Porém, a guitarra emprestada, nomeada viola
indistintamente ao longo do processo, não pertencia ao Seixas mas à Condessa,
Manuela Ozores. Por esse motivo em 20 de fevereiro de 1813, já falecido o
Seixas, a Condessa reclamou a devolução da guitarra por via judiciária. A
partir desse momento seguiram-se vinte e nove fólios de Autos, escritos em
Compostela e na Corunha por advogados e procuradores durante quatro anos.
O médico Baradat iniciou várias petições de
prorrogação para tentar cumprir os requerimentos do processo, sempre
considerando o instrumento da sua propriedade e, portanto, sem o devolver. Esta
dilatação temporal provocou o aumento das despesas do processo, que deveu levar
os litigantes a uma situação económica insustentável. Ambas as partes achavam ter
direito a reclamar quer a devolução da guitarra, quer a propriedade da mesma e
o custo do processo. Uma das quatro testemunhas que declarou a favor da
Condessa, Vicente Feijó Montenegro, descrevia a guitarra do seguinte modo (fólio
6r):
una Guitarra que le vino de Cadiz de seis ordenes con su Caja Cerradura y llabe, aforro de Baieta verde y como vibian juntos el D.n Rafael y su Cuñada la Condesa usaban comunmente de ella. Sabe igualm. te que el citado D. n Rafael la prestó al Cirujano S. r Xptoval Baradat con quien consultaba sus males, y esta consideracion pudo ser el movil para el prestito, y que aora resiste debolberla a su Lex.ma dueña, sin tener a su entender la menor razon y aunque parece alega dadiba o regalo puede ser supuesto; pues que la señora estima mucho esta alaja que le costó tres onzas de Oro segun ella dijo.
As outras três testemunhas da Condessa eram: 1)
Juan Manuel Zisneros, 2) Basilio Modesto de Guerra, do qual só sabemos que era
um criado da Condessa, e 3) Joseph Benito Gonzales das Seixas, que teria mais
de 50 anos, seria um possível parente de Rafael das Seixas e organeiro
compostelano. É chamativo o seu testemunho pois explica que o finado lhe
mostrou a sua preocupação por ter emprestado a guitarra a pessoas que não eram
professores, o que pode dar uma ideia da qualidade da guitarra e do apreço que
lhe tinha a família.
O Alcalde
Constitucional de Santiago na altura, Ramon Rey, resolveu que um perito
estabelecesse o preço real do instrumento. Mas o perito não admitiu sequer o
valor de 500 reais para a guitarra (f. 8r). Segundo as informações consultadas
(Ruiz, 2013) uma onça de ouro, a 8 escudos a onça, e 40 reais o escudo, dava um
total de 320 réis. Portanto, três onças de ouro seriam equivalentes a 960 réis.
Se a guitarra gaditana da Condessa de Oleiros tinha esse valor aproximado, é
certo que a intervenção do perito a prejudicava, como se afirma em Auto
posterior (f. 9r). Com esse preço, pode supor-se que a guitarra seria um
instrumento elaborado com boas madeiras e por um lutier.
Os portos galegos mantinham na altura um forte
comércio com a cidade de Cádis, onde nesta época trabalhava um grupo de
excelentes construtores tais como José Benedid (1760-1836), Josef Guerra
(1770-?), Juan Pagés (1741-1821) e outros membros da família Pagés (Romanillos
e Harris, 2002). Qualquer um deles poderia ter construído a guitarra de seis
ordens com estojo por valor de três onças de ouro que a Condessa de Oleiros
afirmava ter adquirido para uso próprio e da família. Por isso, esta guitarra
ou viola de estimação, como foi denominada ao longo do processo, teria ainda um
valor sentimental maior do que o preço.
O valor do instrumento poderia explicar o
empenho do médico Baradat em ficar dono de uma alhaja (alfaia) que sabia não ser dele e mesmo oferecer-lha à filha
(f. 23r). A complexidade da situação agravava-se com as reiteradas ausências do
Baradat nas convocatórias judiciais. Finalmente, os autos condenaram Baradat a
pagar as despesas do processo. O pleito começou em 20 de fevereiro de 1813 e finalizou
em 6 de fevereiro de 1817, com arredor de 25 ofícios realizados por diversos
letrados e juízes, em que fica patente haver, como mínimo, quatro pessoas com
capacidade de tocar o instrumento.
Algumas
informações sobre @s protagonistas
Manuela Nicolasa Ozores e Espada, filha dos
Condes de Priegue, casou com o primeiro Conde de Oleiros, Manuel Losada e
Bernaldo de Quirós, em 3 de setembro de 1798. Ficou viúva em 1809, o mesmo ano
em que teve o seu filho, Joaquin Losada e Ozores (Fernandez-Mota, 1984, p.
268). Parece que a condessa voltou a casar com o irmão do seu cunhado, Rafael
das Seixas e Ribadeneira, tendo com ele mais uma filha, Maria Dolores Seixas
Ozores. Porém, neste pleito não há nada que deixe ver que a Condessa e Rafael
das Seixas estavam casados, tanto o tratamento dos juristas quanto os
depoimentos das testemunhas falam da Condessa e do Seixas sempre como cunhados.
Os dous eram guitarristas e, possivelmente, também as filhas da Condessa
aprendiam música na guitarra.
Rafael das Seixas e Ribadeneira, da Casa de
Bascuas (Arçua), estudou Leis e Cânones na Universidade de Santiago de
Compostela. Foi regedor de Compostela desde 1794. Em 1809, sendo Reitor do
Seminário compostelano, contribuiu para apetrechar as tropas dos estudantes
compostelanos contra os franceses (Perez Costanti, 1998, p. 194). Segundo este
pleito, morre em 1811.
Um médico Baradat aparece graduado em 8 de janeiro
de 1766 (Massons, 2002, p. 312). É muito possível que incentivasse a sua filha
para aprender guitarra.
Vicente Feijó Montenegro era mestre das filhas
da Condessa, não sabemos se familiar do escritor homónimo recolhido por
Carvalho (1981, p. 119) e aparentado com a família Feijó Montenegro de que
também fazia parte o Padre Feijó. Segundo as informações do pleito Vicente
Feijó teria 28 anos em 1814.
Zisneros frequenta a casa da Condessa desde
criança, é um possível membro da família dos poderosos Condes de Gimonde, que
na altura teria 40 anos. Aparece também a sua irmã Maria Rita que poderia ser a
mencionada em Picallo (2004, p. 179), seriam ambos irmãos do regedor de
Compostela, Pedro Maria Cisneros (p. 188).
Gonzales das Seixas foi autor do órgão das
Dominicas de Belvis entre 1791 e 1793 (Lopez, 2002, p. 416) e do de Santiago da
Corunha em 1795 (Couselo, 2005, p. 393). Ver também Pérez Costanti (1925-1927,
III, pp. 34-35). Possível professor de música na casa da Condessa e, por isso,
suspeito também de ser guitarrista.
O Alcalde
Constitucional de Compostela em 1814 poderia ser Ramon Rey Perez
(1783-1855), professor de Direito Canônico na Universidade de Santiago de
Compostela, que em 1844 foi de novo presidente da Câmara.
Panorama sociopolítico
O último pleito deixa em evidência a batalha
legal entre os membros da nobreza galega, cuja influência política e social
estava em decadência, e um médico, representante da classe liberal, que estava
em auge. Uma outra característica do início do século XIX é a falta de
separação de poderes, pois o Presidente da Câmara, chamado de Alcalde nos Autos, era também o juiz.
Em 1748 Montesquieu formulava em O espírito das leis a necessidade da
separação de poderes, mas o processo mostra claramente que em 1813-1817 essa
teoria ainda não era efetiva no recém-constituído Estado-Reino da Espanha
(Morell, 1982), com o consequente atraso no desenvolvimento político e estatal
que decorreria andando o tempo e até aos nossos dias.
Referências citadas
- Carvalho Calero, Ricardo. (1981). Historia da literatura galega contemporánea 1808-1936 (3ª ed.). Vigo: Galaxia.
- Couselo Bouzas, José. (2005). Galicia
artística en el siglo XVIII y primer tercio del XIX. Santiago
de Compostela: Instituto Teológico Compostelano.
- Fernandez-Mota de Cifuentes, Maria Teresa. (1984). Relación de títulos nobiliarios vacantes, y principales documentos... (2ª ed.). Madrid: Hidalguia.
- Lopez Rivera, Juan José. (2002). El
Modo, la categoría gramatical y la cuestión modal. Santiago
de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela.
- Massons, J. M. (2002). Història del Reial Col.legi de Cirurgia de Barcelona. Espanha: Fundació Uriach 1838. https://www.fu1838.org/pdf/9569.pdf
- Morell Ocaña, L. (1982). “La figura delalcalde en el derecho local español”. Anuario de la Facultad de Derecho, 1(261-291).
- Perez Costanti, Pablo. (1925-1927). Notas viejas galicianas, 3 v. Vigo: Imprenta de los Sindicatos Católicos.
- Perez Costanti, Pablo. (1998). Linajes Galicianos. Santiago de Compostela: Ara Solis, Consorcio de Santiago.
- Picallo Fuentes, H. (2004). “Maíndo (A Estrada, Pontevedra): Espazo xeográfico, humanoe histórico no dominio do Condado de Ximonde”. A Estrada: Miscelánea histórica e cultural (7), 167-227.
- Romanillos Vega, José Luís e Harris Winspear, Marian. (2002). The vihuela de mano and the spanish guitar. A dictionary of the makers of plucked and bowed musical instruments of Spain (1200-2002). Guadalajara: Sanguino.
- Ruiz Trapero, Maria. (2013). La onza:importancia y trascendencia.
- Tinctoris, Johannes. (ca. 1480). De inventione et usu musice...
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