Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Pleitos por uma guitarra

Isabel Rei Samartim
jueves, 12 de diciembre de 2024
Capa do Pleito Ozores-Baradat. Arquivo do Reino da Galiza. Corunha. © 2021 by Isabel Rei Samartim Capa do Pleito Ozores-Baradat. Arquivo do Reino da Galiza. Corunha. © 2021 by Isabel Rei Samartim
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Neste artigo abordarei brevemente três dos processos judiciários decorridos ao longo do tempo na Galiza, motivados pela possessão, roubo ou empréstimo de guitarras. 

Estes litígios dos séculos XVI, XVIII e XIX, conservados no Arquivo do Reino da Galiza, na Corunha, ilustram bem o interesse e a familiaridade com que as gentes galegas tratavam o instrumento. 

Os dous primeiros casos oferecem mais dados sobre o uso e costumes populares da guitarra, entrementes o terceiro ilustra sobre o seu uso no âmbito da nobreza e das profissões liberais. 

Por último, há um componente de género tão evidente em todos que é preciso comentar, bem como elementos sociopolíticos ilustradores de cada uma das épocas.  

Pleito de 1565

Nesse ano, uma mulher foi acusada em Compostela de manter uma casa de prostituição que, segundo o procurador, causava tumultos, ruídos e incómodos vários aos vizinhos da mesma rua, visto que os homens que a frequentavam eram muitos, levavam espadas, pedras e outras armas, alvorotavam na rua, protagonizavam pelejas e costumavam tanger "biuelas, guitarras, cantando y deziendo cantares deshonestos e suzios" (Arquivo do Reino de Galicia, fundo da Real Audiencia, cota: 29.219/19).

A distinção entre ‘violas’ e ‘guitarras’ sugere, como já fazia Vasco da Ponte ao falar sobre o Conde de Lemos guitarrista, que umas podiam ser violas de arco e as outras violas de mão, já chamadas de guitarras. Esta distinção também reflete que as biuelas (violas), forem de arco ou de mão, eram usadas popularmente e sem distinção social das guitarras. Um outro dado importante é a constatação do uso de guitarras/violas de mão para o acompanhamento de cantares burlescos. Um século atrás Tinctoris (ca. 1480, IV.v) mencionava mulheres a acompanhar o canto com guitarra na Catalunha:  

Ghiterre autem usus propter tenuem eius sonum rarissimus est. Ad eamque multo sepius Catalanas mulieres carmina quedam amatoria audivi concinere quam viros quic piam ea personare

Isso tudo unido a que as primeiras representações de guitarristas com o novo sistema de ataque sobre as cordas situam-se no século XIV, permite afirmar que o sistema de acordes e a técnica do rasgado são bem mais anteriores do que habitualmente se indica nas histórias da Guitarra, que costumam identificar-se com a publicação dos primeiros alfabetos como o de Montesardo (1606).

A mulher acusada no processo judicial declarava-se padeira, o homem dela era pedreiro. Manifestavam-se pobres e com dificuldades para conseguir manter uma família com dous filhos, daí o complemento com a casa de prostituição. É esta uma estampa social de interesse quanto à vida do povo compostelano nos meados do século XVI. A anedota foi o produto de uma situação machista, onde a prostituição aparecia como complemento do salário familiar e a acusação baseava-se nos tumultos que causava essa prática sem qualquer intenção de remediar a injustiça da pobreza das mulheres.

Pleito de 1778

Primeira e única página do pleito de 1778, recto. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Primeira e única página do pleito de 1778, recto. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Com data de 29 de dezembro de 1778 aconteceu um outro pleito nos Julgados da Província de Betanços, concretamente, no Julgado da vila de Ferrol e da Granha (Arquivo do Reino de Galicia, cota: 4983/21), em que um marinheiro catalão, Juan Domenech, foi contra uma mulher da Granha (Minho, comarca do Norte da Galiza) motivado pela ocultação duma viola que lhe fora arrebatada três dias antes por outros marinheiros do seu mesmo barco.  

Primeira e única página do pleito de 1778, verso. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Primeira e única página do pleito de 1778, verso. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

O pleito indicava que Domenech era "residente en esta playa", que era dono da viola roubada ("le quitaron la vihuela de su uso amenazandole con armas") e que, com ajuda dum policial, demonstrou que a viola se achava em baixo da cama da senhora Maria del Carmen, também conhecida pela alcunha de Falperra. Esta Maria poderia ser uma prostituta da Granha que aceitasse objetos em pagamento do serviço. A viola, chamada de "alaxa" (alfaia, joia) no texto do pleito, poderia ter servido para esse fim.  

Pelo mesmo motivo parece evidente que Juan Domenech solicitou os serviços da mesma mulher e por causa disso descobriu a viola roubada em baixo daquela cama. Sem ter em conta o milagre que lhe deve ter parecido a Juan Domenech tal descoberta, e tendo a sua guitarra de volta, é devido ressaltar que por causa do pleito que ele colocou à Maria del Carmen (e não aos ladrões da guitarra) esta foi detida, interrogada e condenada a pagar 80 reais pelos custos processuais.

Pleito de 1813-1817

Era o ano de 1811 e a Condessa Viúva de Oleiros, com residência na cidade de Compostela, partilhava morada com o seu cunhado Rafael das Seixas quando este ficou doente. Devido à gravidade da doença, o Seixas solicitou os serviços do médico cirurgião do Exército, o senhor Cristóbal Baradat. Como não podia afrontar as despesas do tratamento, o doente resolveu emprestar ao médico, por um período de dous meses, uma guitarra ‘de estimação’ que ele usava, em pagamento provisório e até o médico receber uma outra guitarra que o Seixas afirmava ter encarregado.  

Porém, a guitarra emprestada, nomeada viola indistintamente ao longo do processo, não pertencia ao Seixas mas à Condessa, Manuela Ozores. Por esse motivo em 20 de fevereiro de 1813, já falecido o Seixas, a Condessa reclamou a devolução da guitarra por via judiciária. A partir desse momento seguiram-se vinte e nove fólios de Autos, escritos em Compostela e na Corunha por advogados e procuradores durante quatro anos.  

O médico Baradat iniciou várias petições de prorrogação para tentar cumprir os requerimentos do processo, sempre considerando o instrumento da sua propriedade e, portanto, sem o devolver. Esta dilatação temporal provocou o aumento das despesas do processo, que deveu levar os litigantes a uma situação económica insustentável. Ambas as partes achavam ter direito a reclamar quer a devolução da guitarra, quer a propriedade da mesma e o custo do processo. Uma das quatro testemunhas que declarou a favor da Condessa, Vicente Feijó Montenegro, descrevia a guitarra do seguinte modo (fólio 6r):

Primeira página do pleito de 1813-17 Ozores-Baradat, fólio 2r. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Primeira página do pleito de 1813-17 Ozores-Baradat, fólio 2r. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

una Guitarra que le vino de Cadiz de seis ordenes con su Caja Cerradura y llabe, aforro de Baieta verde y como vibian juntos el D.n Rafael y su Cuñada la Condesa usaban comunmente de ella. Sabe igualm. te que el citado D. n Rafael la prestó al Cirujano S. r Xptoval Baradat con quien consultaba sus males, y esta consideracion pudo ser el movil para el prestito, y que aora resiste debolberla a su Lex.ma dueña, sin tener a su entender la menor razon y aunque parece alega dadiba o regalo puede ser supuesto; pues que la señora estima mucho esta alaja que le costó tres onzas de Oro segun ella dijo.

As outras três testemunhas da Condessa eram: 1) Juan Manuel Zisneros, 2) Basilio Modesto de Guerra, do qual só sabemos que era um criado da Condessa, e 3) Joseph Benito Gonzales das Seixas, que teria mais de 50 anos, seria um possível parente de Rafael das Seixas e organeiro compostelano. É chamativo o seu testemunho pois explica que o finado lhe mostrou a sua preocupação por ter emprestado a guitarra a pessoas que não eram professores, o que pode dar uma ideia da qualidade da guitarra e do apreço que lhe tinha a família.

O Alcalde Constitucional de Santiago na altura, Ramon Rey, resolveu que um perito estabelecesse o preço real do instrumento. Mas o perito não admitiu sequer o valor de 500 reais para a guitarra (f. 8r). Segundo as informações consultadas (Ruiz, 2013) uma onça de ouro, a 8 escudos a onça, e 40 reais o escudo, dava um total de 320 réis. Portanto, três onças de ouro seriam equivalentes a 960 réis. Se a guitarra gaditana da Condessa de Oleiros tinha esse valor aproximado, é certo que a intervenção do perito a prejudicava, como se afirma em Auto posterior (f. 9r). Com esse preço, pode supor-se que a guitarra seria um instrumento elaborado com boas madeiras e por um lutier.

Os portos galegos mantinham na altura um forte comércio com a cidade de Cádis, onde nesta época trabalhava um grupo de excelentes construtores tais como José Benedid (1760-1836), Josef Guerra (1770-?), Juan Pagés (1741-1821) e outros membros da família Pagés (Romanillos e Harris, 2002). Qualquer um deles poderia ter construído a guitarra de seis ordens com estojo por valor de três onças de ouro que a Condessa de Oleiros afirmava ter adquirido para uso próprio e da família. Por isso, esta guitarra ou viola de estimação, como foi denominada ao longo do processo, teria ainda um valor sentimental maior do que o preço.

O valor do instrumento poderia explicar o empenho do médico Baradat em ficar dono de uma alhaja (alfaia) que sabia não ser dele e mesmo oferecer-lha à filha (f. 23r). A complexidade da situação agravava-se com as reiteradas ausências do Baradat nas convocatórias judiciais. Finalmente, os autos condenaram Baradat a pagar as despesas do processo. O pleito começou em 20 de fevereiro de 1813 e finalizou em 6 de fevereiro de 1817, com arredor de 25 ofícios realizados por diversos letrados e juízes, em que fica patente haver, como mínimo, quatro pessoas com capacidade de tocar o instrumento.

Algumas informações sobre @s protagonistas  

Página interior do pleito de 1813-17 Ozores-Baradat, fólio 24r. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Página interior do pleito de 1813-17 Ozores-Baradat, fólio 24r. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Manuela Nicolasa Ozores e Espada, filha dos Condes de Priegue, casou com o primeiro Conde de Oleiros, Manuel Losada e Bernaldo de Quirós, em 3 de setembro de 1798. Ficou viúva em 1809, o mesmo ano em que teve o seu filho, Joaquin Losada e Ozores (Fernandez-Mota, 1984, p. 268). Parece que a condessa voltou a casar com o irmão do seu cunhado, Rafael das Seixas e Ribadeneira, tendo com ele mais uma filha, Maria Dolores Seixas Ozores. Porém, neste pleito não há nada que deixe ver que a Condessa e Rafael das Seixas estavam casados, tanto o tratamento dos juristas quanto os depoimentos das testemunhas falam da Condessa e do Seixas sempre como cunhados. Os dous eram guitarristas e, possivelmente, também as filhas da Condessa aprendiam música na guitarra.

Rafael das Seixas e Ribadeneira, da Casa de Bascuas (Arçua), estudou Leis e Cânones na Universidade de Santiago de Compostela. Foi regedor de Compostela desde 1794. Em 1809, sendo Reitor do Seminário compostelano, contribuiu para apetrechar as tropas dos estudantes compostelanos contra os franceses (Perez Costanti, 1998, p. 194). Segundo este pleito, morre em 1811.

Um médico Baradat aparece graduado em 8 de janeiro de 1766 (Massons, 2002, p. 312). É muito possível que incentivasse a sua filha para aprender guitarra.

Vicente Feijó Montenegro era mestre das filhas da Condessa, não sabemos se familiar do escritor homónimo recolhido por Carvalho (1981, p. 119) e aparentado com a família Feijó Montenegro de que também fazia parte o Padre Feijó. Segundo as informações do pleito Vicente Feijó teria 28 anos em 1814.

Zisneros frequenta a casa da Condessa desde criança, é um possível membro da família dos poderosos Condes de Gimonde, que na altura teria 40 anos. Aparece também a sua irmã Maria Rita que poderia ser a mencionada em Picallo (2004, p. 179), seriam ambos irmãos do regedor de Compostela, Pedro Maria Cisneros (p. 188).

Gonzales das Seixas foi autor do órgão das Dominicas de Belvis entre 1791 e 1793 (Lopez, 2002, p. 416) e do de Santiago da Corunha em 1795 (Couselo, 2005, p. 393). Ver também Pérez Costanti (1925-1927, III, pp. 34-35). Possível professor de música na casa da Condessa e, por isso, suspeito também de ser guitarrista.

O Alcalde Constitucional de Compostela em 1814 poderia ser Ramon Rey Perez (1783-1855), professor de Direito Canônico na Universidade de Santiago de Compostela, que em 1844 foi de novo presidente da Câmara.

Panorama sociopolítico

Última página do pleito de 1813-17 Ozores-Baradat, fólio 29v. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Última página do pleito de 1813-17 Ozores-Baradat, fólio 29v. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

O último pleito deixa em evidência a batalha legal entre os membros da nobreza galega, cuja influência política e social estava em decadência, e um médico, representante da classe liberal, que estava em auge. Uma outra característica do início do século XIX é a falta de separação de poderes, pois o Presidente da Câmara, chamado de Alcalde nos Autos, era também o juiz.

Em 1748 Montesquieu formulava em O espírito das leis a necessidade da separação de poderes, mas o processo mostra claramente que em 1813-1817 essa teoria ainda não era efetiva no recém-constituído Estado-Reino da Espanha (Morell, 1982), com o consequente atraso no desenvolvimento político e estatal que decorreria andando o tempo e até aos nossos dias.

Referências citadas
  1. Carvalho Calero, Ricardo. (1981). Historia da literatura galega contemporánea 1808-1936 (3ª ed.). Vigo: Galaxia.
  2. Couselo Bouzas, José. (2005). Galicia artística en el siglo XVIII y primer tercio del XIX. Santiago de Compostela: Instituto Teológico Compostelano.
  3. Fernandez-Mota de Cifuentes, Maria Teresa. (1984). Relación de títulos nobiliarios vacantes, y principales documentos... (2ª ed.). Madrid: Hidalguia.
  4. Lopez Rivera, Juan José. (2002). El Modo, la categoría gramatical y la cuestión modal. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela.
  5. Massons, J. M. (2002). Història del Reial Col.legi de Cirurgia de Barcelona. Espanha: Fundació Uriach 1838. https://www.fu1838.org/pdf/9569.pdf
  6. Morell Ocaña, L. (1982). La figura delalcalde en el derecho local español”. Anuario de la Facultad de Derecho, 1(261-291).
  7. Perez Costanti, Pablo. (1925-1927). Notas viejas galicianas, 3 v. Vigo: Imprenta de los Sindicatos Católicos.
  8. Perez Costanti, Pablo. (1998). Linajes Galicianos. Santiago de Compostela: Ara Solis, Consorcio de Santiago.
  9. Picallo Fuentes, H. (2004). “Maíndo (A Estrada, Pontevedra): Espazo xeográfico, humanoe histórico no dominio do Condado de Ximonde”. A Estrada: Miscelánea histórica e cultural (7), 167-227.
  10. Romanillos Vega, José Luís e Harris Winspear, Marian. (2002). The vihuela de mano and the spanish guitar. A dictionary of the makers of plucked and bowed musical instruments of Spain (1200-2002). Guadalajara: Sanguino.
  11. Ruiz Trapero, Maria. (2013). La onza:importancia y trascendencia.
  12. Tinctoris, Johannes. (ca. 1480). De inventione et usu musice...
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