Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

As orquestras de plectro (3)

Isabel Rei Samartim
jueves, 4 de noviembre de 2021
Orquestra de plectro de Fene © 1950 by Maninhos / Fenecom Orquestra de plectro de Fene © 1950 by Maninhos / Fenecom
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Tanto pelas ocasiões de atuação, quanto pela origem dos e das componentes, assim como pelo tipo de repertório, as orquestras de plectro são expressões da música popular galega. Um dos primeiros nomes que conhecemos de guitarristas ferrolanos ligados à música popular é o de Francisco Martínez Saavedra, ativo em 1891 e falecido em 1920, no Ferrol. Avô do matemático Honorato Martínez Luaces, dele diz Sánchez (1993, p. 30) que era Mestre de Obras, grande cantor de voz seleta, improvisador de versos e música, e digno intérprete de guitarra. A continuação, Sánchez anota várias das letras compostas por Francisco Martínez para cantar em agrupamentos de cordofones.

No seu estudo sobre as canções populares do Ferrol, este autor reúne várias cuja letra e música responde aos protagonistas da criação popular ferrolana no fim do século: Francisco Martínez Saavedra, Juan Pérez [de Castro?] e Manuel Pérez, Benito Vilumbrales, Perfecto López, Eduardo Díaz, J. Bretons, Prudencio Piñeiro, Santos Rodríguez [Gómez], Gregorio Baudot e outros músicos. Como costuma acontecer com a música popular, Sánchez recolhe somente as letras, que eram as que se distribuíam para a gente cantar, entanto a música era aprendida de cor pelos intérpretes. Assim ficamos sem conhecer a música das valsas de Pérez, da canção Blanco y Negro [para a orquestra corunhesa de Maurício Farto?] dos carnavais de 1896, ou a composta em 1904 por Julia V., intitulada Nibelungos.

No Ferrol de final de século havia várias sociedades que organizavam concertos. O Casino, o Centro Recreativo, o Círculo de Artesãos e a sociedade La Peña eram as mais importantes. Os seus membros organizavam e participavam nos eventos teatrais e musicais da localidade. As orquestras com guitarras eram numerosas, tinham entre quinze e trinta componentes, admitiam crianças e estavam dirigidas por músicos de formação académica.

Os agrupamentos tocavam ali onde se lhes solicitava, tanto nas festas da cidade quanto nas vilas pequenas, em que os músicos podiam ser das próprias aldeias. Nos entrudos, nos solstícios de verão, nos recebimentos de pessoalidades ou nas pequenas festas locais sempre atuava algum agrupamento de cordofones dedilhados, ou orquestra de violinos, flautas e guitarras. Dentre o mare magnum de autores aqui poremos a atenção nos músicos que dirigiram os agrupamentos mais estáveis e que deixaram repertório para estas formações musicais.

Em 1884 organizava-se no Ferrol uma estudantina com mais de trinta moços que se preparavam para celebrar o Entrudo na vila de Noia (El Eco de Galicia, 1884). Parece que a iniciativa tinha sido dos noienses, sendo aceitada por numerosos ferrolanos. As viagens da Tuna Ferrolana parecem repetir-se no verão de 1888, quando atuam para angariar fundos com o motivo de uma viagem para as festas do S. Roque em Betanços (El Correo Gallego, 1888). O repertório incluía uma jota de Juan Pérez, o violinista e regente ferrolano, um arranjo da Serenata de Schubert e um passodoble.

O violinista Juan Pérez foi um dos regentes de orquestras com guitarras do Ferrol. Em 1894 organizava para o Centro Recreativo um recital no mar, sobre uma lancha que saía de Carinho, recebendo assim o navio Nautilus que iria até ao porto da cidade. Uma das obras que interpretaram foi o passodoble intitulado ¡Fondo!, composto para a ocasião pelo próprio Pérez (EEdG, 1894). Sánchez (1993, p. 34) recolhe somente a letra de uma valsa de Pérez intitulada Los Pierrots e composta para esse grupo no entrudo de 1895. Em 1897 vemo-lo à frente do seu grupo na procissão de Perlio. Na mesma notícia lemos que na procissão de Baralhobre, realizada na mesma altura, atuou um outro grupo de plectro formado por oito moços da localidade (ECG, 1897).

Para a festa das Pepitas [Josefas, dia de São José, aos 19 de março] de 1898, Pérez compôs uma valsa para um agrupamento de 7 violinos, 4 flautas, 14 guitarras, 4 pandeiretas e 14 vozes (ECG, 1898a). Curioso é que o número de guitarras coincidia com o de vozes, o que induz a pensar que cantores e guitarristas eram as mesmas pessoas.

Nesse mesmo Carnaval saiu a rusga dos Pierrots, que tocou uma valsa e um passa-ruas de Juan Pérez, e estava formada por 6 violinos, 3 flautas, 9 guitarras, 3 pandeiretas e 16 vozes. Um dos componentes da rusga era uma criança, filho de um dos maquinistas do Teatro Jofre (ECG, 1898b). Em 1900 Pérez compõe a valsa Un día de romería, em 1902 a valsa La Acacia, em 1903 El Nardo, em 1905 El Modernismo, em 1911 a dança de longa letra intitulada Si el día de difuntos (Sánchez, 1993, p. 36, 39, 40, 54 e 60), todas as obras diretamente ligadas ao evento ou função que tinham dentro das festas patrimoniais.

Um outro músico e regente de grupos de plectro do Ferrol foi o bandurrista Pastor Hernández, a quem localizamos entre 1898 e 1900 organizando importantes concertos e colaborando com as sociedades ferrolanas. Em 8 de março de 1899 produz-se a estreia no Teatro Jofre da ópera de Bretón La Dolores, e Pastor Hernández dirige o grupo de guitarras e bandurras que participava na função, formado por 17 intérpretes (ECG, 1899a). O grupo deveu ter sucesso, pois nas semanas a seguir percorria as ruas ferrolanas e oferecia um recital no teatro (ECG, 1899b, 1899c).

Em 1900 Pastor Hernández organizou um recital dedicado à sociedade La Peña em que participava a orquestra de bandurras e guitarras dirigida por Antonio Seoane Pampín, e formada por 16 moços da localidade, que tocaram o passodoble A Hernández, de A. S. [Antonio Seoane], a valsa En una romería, de R. T. [?], depois os irmãos Pío e Joaquín Arias, a quem já conhecemos por fazerem parte da orquestra do Sporting Club da Corunha, tocaram com Pastor Hernández em trio para bandurra, alaúde e guitarra o Revêrie au Bord de la Mer de Offenbach e, para finalizar a primeira parte, Hernández interpretou na bandurra o passodoble El Algabeño de J. Salvador, o Canto de amor de Almagro e a Alvorada de Veiga sendo acompanhado por um pianista corunhês, cujo nome não aparece. Como remate, a orquestra de bandurras e guitarras de Pampín tocou a mazurca Soledad e o Hino de Transvaal.

Catharina van Rees. © Dominio público. Wikipedia.Catharina van Rees. © Dominio público. Wikipedia.

A República do Transvaal, um território na parte Norte da hoje conhecida por República Sul-Africana, foi autoproclamada em 1857 sob domínio holandês, teve vários períodos de independência e em 1900 mantinha a segunda guerra dos Bôeres contra a anexação britânica, que finalmente aconteceu em 1902. Tocar o seu hino era, portanto, um sinal de apoio à independência da nova República. A música foi composta pela compositora, escritora e editora holandesa Catharina van Rees (1831-1915) em 1875.

A segunda parte deste fastuoso evento contou com a participação do clarinetista Juan Fernández Venavides que interveio com um solo de clarinete composto pelo editor e músico Antonio Romero y Andía, e de novo Pastor Hernández, acompanhado por Pampín na flauta e o pianista corunhês cujo nome nunca se refere. Intepretaram o prelúdio da zarzuela de Marqués El Anillo de Hierro, umas Malagueñas de Bielsa com acompanhamento de duas guitarras e um Capricho y juguete de bandurria da autoria do próprio Pastor Hernández, rematando o ato a orquestra de plectro. (ECG, 1900a).

O grupo de cordofones formado para este evento teve tanto sucesso que depois de passear as ruas ferrolanas, em dois meses acabou por conformar a orquestra Airiños d'a miña terra, de clara consciência galeguista (ECG, 1900b). O local de ensaio da Airiños em dezembro desse ano era o n.º 27 da rua Real (ECG, 1900c). O nome da orquestra sai do primeiro verso do poema de Francisco Añón, A Galicia, o primeiro texto que abria o Album de la Caridad (Álbum Caridad, 1862), que na altura representava o ressurgir literário da Galiza e a consequente dignificação da cultura galega:

Airiños d'a miña terra,
airiños, airiños, aires,
airiños, levám'á ela.
Ay esperta, adorada Galicia,
D'ese sono en q'estás debruzada;
D'o teu rico porvir a alborada
Po-l'o Ceo engergándose vay.
Ja cantando os teus fillos te chaman,
E c'os brazos en cruz se espreguizan...
Malpocados! o q'eles cobizan
É un bico d'os labios d'a Nay.

A orquestra ferrolana Airiños d'a miña terra com o seu patrocinador, o engenheiro A. Comerma e o menino virtuoso Pepito Arriola. © Dominio público. Revista Nuevo mundo.A orquestra ferrolana Airiños d'a miña terra com o seu patrocinador, o engenheiro A. Comerma e o menino virtuoso Pepito Arriola. © Dominio público. Revista Nuevo mundo.

Já desde o início o regente de Airiños d'a miña terra seria Antonio Seoane Pampín. Pampín levará a orquestra ao seu máximo nível de interpretação e reconhecimento durante todo o primeiro terço do século XX, convertendo-a num ícone da cidade do Ferrol, até setembro de 1936, quando desaparece apagada pelo regime franquista. Até esse momento, a sua atividade galeguista, o seu relacionamento com Catalunha e o patrocínio do militar progressista Andreu Comerma.

Engenheiro naval e membro da Armada no Ferrol, Comerma integrou-se na vida ferrolana no início do século, como presidente do Ateneu, pronunciador de conferências, monografias sobre os castelos de Moeche, Andrade e Naraío, sobre o mundo obreiro ferrolano, e como patrocinador da Airiños d'a miña terra, todas atividades que evidenciam uma linha progressista e republicana, depois exterminada pelo processo golpista cujas terríveis consequências se arrastam até agora (Rodon e Prados, 2011; Rei-Samartim, 2021).

Orquestra de plectro "Pepito Arriola", da sociedade "Ferrol y su comarca", na Havana, 1913. © 2000 by Peña.Orquestra de plectro "Pepito Arriola", da sociedade "Ferrol y su comarca", na Havana, 1913. © 2000 by Peña.

É conhecida a relação entre esta orquestra e o virtuoso Pepito Arriola. Na honra deste menino, anos mais tarde foi criada na Havana a orquestra de guitarras “Pepito Arriola”, dentro da sociedade “Ferrol y su comarca”. Esta orquestra, herdeira da anterior intitulada Juventud Ferrolana e criada em 1908, incorporou géneros cubanos ao seu repertório como o danzón (Almuinha, p. 94).

Outros regentes ferrolanos de grupos, rusgas e orquestras com guitarras foram Gonzalo Prego, Benito Vilumbrales, o bandurrista José Nicolás e o violinista Arturo Martínez. Todos eles deixaram pegadas na hemeroteca que agora teremos de abreviar. Esperamos que pesquisas mais aprofundadas ampliem a informação sobre estes e outros músicos ferrolanos. 

Bibliografía

Álbum de la Caridad. Juegos Florales de La Coruña en 1861, seguido de un mosaico poético de nuestros vates gallegos... (1862). Corunha: Hospicio Provincial, Mariano M. Sancho. 
Almuinha, R. P. (2008). A la Habana quiero ir. Los gallegos en la música de Cuba. Compostela: Sotelo Blanco.
El Correo Gallego (1888). Ferrol: 28 de julho, p. 3.
El Correo Gallego (1897). Ferrol: 10 de junho, p. 1
El Correo Gallego (1898a). Ferrol: 9 de março, p. 2
El Correo Gallego (1898b). Ferrol: 19 de março, p. 3
El Correo Gallego (1899a). Estreno de "La Dolores". Ferrol: 7 de março, pp. 1-2.
El Correo Gallego (1899b). Ferrol: 16 de março, p. 2
El Correo Gallego (1899c). Ferrol: 23 de março, p. 2
El Correo Gallego (1900a). El concierto del domingo. Ferrol: 30 de maio, p. 1
El Correo Gallego (1900b). Ferrol: 20 de junho, p. 1
El Correo Gallego (1900c). Cartera del reporter. Ferrol: 3 de dezembro, p. 1.
El Eco de Galicia. Diario de la tarde (1894). La Nautilus. Lugo: 13 de agosto, p. 2.
El Eco de Galicia. Revista semanal de ciencias, arte y literatura (1884). Havana: 13 de janeiro, p. 7.
Peña Saavedra, V. (2000). "As escolas de americanos en Galicia: Proxectos e realizacións na comarca de Ferrolterra". Cátedra. Revista eumesa de estudios, 7, pp. 217-273.
Rei-Samartim, I. (2021). "Guitarristas de Betanços: Breve história da guitarra brigantina". Anuario Brigantino, 43, pp. 549-576.
Rodon, J. e Prados, J. (2011): Comerma. Um enginyer de l’Armada em el segle de les llums. Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Montserrat.
Sánchez Dopico, R. (1993). Cantar en Ferrol. Recopilación de 677 canciones, unas genuinas de Ferrol, otras de las singulares rondallas de las Pepitas, las demás muy cantadas en Ferrolterra, (3ª ed). Ferrol: CIT Ciudad de Ferrol.
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