Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaAs orquestras de plectro (3)
Isabel Rei Samartim
Tanto pelas ocasiões de atuação, quanto pela origem dos e das componentes, assim como pelo tipo de repertório, as orquestras de plectro são expressões da música popular galega. Um dos primeiros nomes que conhecemos de guitarristas ferrolanos ligados à música popular é o de Francisco
No seu estudo sobre as canções populares do Ferrol, este autor reúne várias cuja letra e música responde aos protagonistas da criação popular ferrolana no fim do século: Francisco Martínez Saavedra, Juan Pérez [de Castro?] e Manuel Pérez, Benito Vilumbrales, Perfecto López, Eduardo Díaz, J. Bretons, Gregorio Baudot e outros músicos. Como costuma acontecer com a música popular, Sánchez recolhe somente as letras, que eram as que se distribuíam para a gente cantar, entanto a música era aprendida de cor pelos intérpretes. Assim ficamos sem conhecer a música das valsas de Pérez, da canção Blanco y Negro [para a orquestra corunhesa de ?] dos carnavais de 1896, ou a composta em 1904 por Julia V., intitulada Nibelungos.
No Ferrol de final de século havia várias sociedades que organizavam concertos. O Casino, o Centro Recreativo, o Círculo de Artesãos e a sociedade La Peña eram as mais importantes. Os seus membros organizavam e participavam nos eventos teatrais e musicais da localidade. As orquestras com guitarras eram numerosas, tinham entre quinze e trinta componentes, admitiam crianças e estavam dirigidas por músicos de formação académica.
Os agrupamentos tocavam ali onde se lhes solicitava, tanto nas festas da cidade quanto nas vilas pequenas, em que os músicos podiam ser das próprias aldeias. Nos entrudos, nos solstícios de verão, nos recebimentos de pessoalidades ou nas pequenas festas locais sempre atuava algum agrupamento de cordofones dedilhados, ou orquestra de violinos, flautas e guitarras. Dentre o mare magnum de autores aqui poremos a atenção nos músicos que dirigiram os agrupamentos mais estáveis e que deixaram repertório para estas formações musicais.
Em 1884 organizava-se no Ferrol uma estudantina com mais de trinta moços que se preparavam para celebrar o Entrudo na vila de Noia (El Eco de Galicia, 1884). Parece que a iniciativa tinha sido dos noienses, sendo aceitada por numerosos ferrolanos. As viagens da Tuna Ferrolana parecem repetir-se no verão de 1888, quando atuam para angariar fundos com o motivo de uma viagem para as festas do S. Roque em Betanços (El Correo Gallego, 1888). O repertório incluía uma jota de Juan Pérez, o violinista e regente ferrolano, um arranjo da Serenata de Schubert e um passodoble.
O violinista
Para a festa das Pepitas [Josefas, dia de São José, aos 19 de março] de 1898, Pérez compôs uma valsa para um agrupamento de 7 violinos, 4 flautas, 14 guitarras, 4 pandeiretas e 14 vozes (ECG, 1898a). Curioso é que o número de guitarras coincidia com o de vozes, o que induz a pensar que cantores e guitarristas eram as mesmas pessoas.
Nesse mesmo Carnaval saiu a rusga dos Pierrots, que tocou uma valsa e um passa-ruas de Juan Pérez, e estava formada por 6 violinos, 3 flautas, 9 guitarras, 3 pandeiretas e 16 vozes. Um dos componentes da rusga era uma criança, filho de um dos maquinistas do Teatro Jofre (ECG, 1898b). Em 1900 Pérez compõe a valsa Un día de romería, em 1902 a valsa La Acacia, em 1903 El Nardo, em 1905 El Modernismo, em 1911 a dança de longa letra intitulada Si el día de difuntos (Sánchez, 1993, p. 36, 39, 40, 54 e 60), todas as obras diretamente ligadas ao evento ou função que tinham dentro das festas patrimoniais.
Um outro músico e regente de grupos de plectro do Ferrol foi o bandurrista
Em 1900 Pastor Hernández organizou um recital dedicado à sociedade La Peña em que participava a orquestra de bandurras e guitarras dirigida por
A República do Transvaal, um território na parte Norte da hoje conhecida por República Sul-Africana, foi autoproclamada em 1857 sob domínio holandês, teve vários períodos de independência e em 1900 mantinha a segunda guerra dos Bôeres contra a anexação britânica, que finalmente aconteceu em 1902. Tocar o seu hino era, portanto, um sinal de apoio à independência da nova República. A música foi composta pela compositora, escritora e editora holandesa Catharina
A segunda parte deste fastuoso evento contou com a participação do clarinetista Juan Fernández Venavides que interveio com um solo de clarinete composto pelo editor e músico
O grupo de cordofones formado para este evento teve tanto sucesso que depois de passear as ruas ferrolanas, em dois meses acabou por conformar a orquestra Airiños d'a miña terra, de clara consciência galeguista (ECG, 1900b). O local de ensaio da Airiños em dezembro desse ano era o n.º 27 da rua Real (ECG, 1900c). O nome da orquestra sai do primeiro verso do poema de Francisco Añón, A Galicia, o primeiro texto que abria o Album de la Caridad (Álbum Caridad, 1862), que na altura representava o ressurgir literário da Galiza e a consequente dignificação da cultura galega:
Airiños d'a miña terra,
airiños, airiños, aires,
airiños, levám'á ela.
Ay esperta, adorada Galicia,
D'ese sono en q'estás debruzada;
D'o teu rico porvir a alborada
Po-l'o Ceo engergándose vay.
Ja cantando os teus fillos te chaman,
E c'os brazos en cruz se espreguizan...
Malpocados! o q'eles cobizan
É un bico d'os labios d'a Nay.
Já desde o início o regente de Airiños d'a miña terra seria Antonio Seoane Pampín. Pampín levará a orquestra ao seu máximo nível de interpretação e reconhecimento durante todo o primeiro terço do século XX, convertendo-a num ícone da cidade do Ferrol, até setembro de 1936, quando desaparece apagada pelo regime franquista. Até esse momento, a sua atividade galeguista, o seu relacionamento com Catalunha e o patrocínio do militar progressista Andreu Comerma.
Engenheiro naval e membro da Armada no Ferrol, Comerma integrou-se na vida ferrolana no início do século, como presidente do Ateneu, pronunciador de conferências, monografias sobre os castelos de Moeche, Andrade e Naraío, sobre o mundo obreiro ferrolano, e como patrocinador da Airiños d'a miña terra, todas atividades que evidenciam uma linha progressista e republicana, depois exterminada pelo processo golpista cujas terríveis consequências se arrastam até agora (Rodon e Prados, 2011; Rei-Samartim, 2021).
É conhecida a relação entre esta orquestra e o virtuoso Pepito Arriola. Na honra deste menino, anos mais tarde foi criada na Havana a orquestra de guitarras “Pepito Arriola”, dentro da sociedade “Ferrol y su comarca”. Esta orquestra, herdeira da anterior intitulada Juventud Ferrolana e criada em 1908, incorporou géneros cubanos ao seu repertório como o danzón (Almuinha, p. 94).
Outros regentes ferrolanos de grupos, rusgas e orquestras com guitarras foram , Benito Vilumbrales, o bandurrista José Nicolás e o violinista Arturo Martínez. Todos eles deixaram pegadas na hemeroteca que agora teremos de abreviar. Esperamos que pesquisas mais aprofundadas ampliem a informação sobre estes e outros músicos ferrolanos.
Comentarios