Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaA família Ronzi e os fundos galegos para guitarra
Isabel Rei Samartim

Chamou a nossa atenção uma obra que se acha em dous dos fundos galegos para guitarra, o da família Valladares e o de Canuto Berea. Dentro das pesquisas guitarrísticas os dados podiam oferecer informações relevantes sobre outros músicos, ou músicos doutros lugares. Este é o caso da hoje desconhecida família Ronzi, a sua passagem itinerante pela Espanha, e a presença da sua música na Galiza.
Com o título de El curro marinero, esta obra de Stanislao Ronzi (1823-1893) aparece no Fundo Valladares nas páginas 92r e 92v do que temos denominado Pastas Vermelhas, um conjunto de manuscritos guardados originalmente numas pastas dessa cor. El curro marinero é uma canção para voz e guitarra, em Mi m e compasso em 3/8, com letra em castelhano. A mesma canção, do mesmo autor, conserva-se copiada no Arquivo Canuto Berea, na cota M-613/88, em Sol m. Também está no Canuto Berea, com acompanhamento de guitarra, a partitura da Cavatina da ópera Gemma di Vergy, de Donizetti, intitulada Una voce al cor d’in torno. Na estréia dessa ópera em La Scala de Milão, em 1834, a Prima Donna foi a soprano Giuseppina Ronzi de Begnis.
Giuseppina Ronzi de Begnis (1800-1853)
Foi uma das divas da ópera italiana na primeira metade do século XIX, ao nível de Giuditta Pasta, Pauline Viardot e Maria Malibran. Giuseppina Ronzi teve uma destacada carreira operística, atuou em cenários por toda a Europa e elaborou um estilo próprio de interpretação (Forbes, 2001). O apelido de Begnis era o do marido, o baixo Giuseppe de Begnis (1793-1849).
A soprano, que também fazia papeis de mezzo-soprano, estreou óperas dos grandes compositores italianos e atingiu uma fama inquestionável de soprano de bom gosto, que dominava o seu instrumento. Admirada por Donizetti, o compositor escreveu para ela Gemma di Vergy, mas também Roberto Devereux (1837), onde interpretou o papel da Rainha Elizabeth. Foi também muito apreciada a sua interpretação da Norma de Bellini, menos conhecida hoje que a de outras cantoras do seu tempo.
Giuseppina Ronzi esteve em ativo ao longo de três décadas, entre 1815 e 1845. Começou com 14 anos de idade, e com 17 fazia o papel de Giulia na ópera Vestale de Gaspare Spontini, em Florença. O seu período de maior produção foi na década de 1830. Por exemplo, no ano de 1834, Giuseppina Ronzi não somente estreou Gemma di Vergy, também cantou a Norma de Bellini, a Anna Bolena de Donizetti, realizou os papeis de mezzo-soprano em I Capuletti e i Montecchi de Bellini e cantou a Desdémona no Otello de Rossini (Riggs, 2003, p. 138).
Quem eram @s Ronzi?
Tanto Giuseppina Ronzi quanto o violinista, cantor, compositor e empresário italiano Stanislao Ronzi (1823-1893) eram membros de uma conhecida família italiana de músicos. Uma anedota a envolver Stanislao Ronzi aparece narrada no Manuale della giurisprudenza dei teatri con appendice sulla proprietà letteraria teatrale di E. Salucci. No entrudo de 1858, o senhor Stross, marido da cantora de ópera, a austríaca Katharina Goldberg, achou que os irmãos Ronzi, empresários teatrais e musicais no Teatro della Pergola em Florença, tinham assobiado a interpretação da sua mulher, e por esse motivo Stross insultou o senhor Stanislao Ronzi à saída do teatro. Os irmãos Ronzi apresentaram no dia a seguir uma denúncia no Tribunal de Justiça contra Stross (Salucci, 1858).
Músicos, impressores e empresários
O jornal Allgemeine musikalische Zeitung recolhe em 1835 várias notícias da família Ronzi: Em 27 de fevereiro desse ano Stanislao Ronzi deu com concerto de violino no Teatro d'Apollo em Roma e regressou para a França. Com este motivo o jornal alemão faz um repasso por toda a família Ronzi e nomeia o pai, mestre de dança, possivelmente Melchior, a filha Giuseppina, famosa cantora de ópera, Antonio, o irmão mais novo, tenor e compositor, e Luigi, também compositor. Destaca o duplo concerto para piano e violino que tocaram juntos Antonio e Stanislao e as capacidades deste como cantor e intérprete. A seguir anuncia outras óperas onde também cantam os Ronzi (Romberg, 1835, pp. 513-514).
Por todo o jornal há notícias dos concertos de algum dos irmãos e sobretudo da irmã Ronzi. Um cantor Ronzi aparecia também no elenco de protagonistas do melodrama trágico Isabella degli Abenanti (Nápoles, 1836), interpretando o personagem de Piero (Sapio, 1836). Em 1842 um Ronzi organizava um concerto em Londres. Recolhe-o o jornal londinense The Musical World (1836-1891) na sua edição de 23 de junho. Também o Dictionary of Biographical Reference de 1871 recolhe os nomes de Antonio, Mlle. Joséphine, Luigi e Stanislao (Phillips, 1871, pp. 807-808):
Ronzi, Antonio, Italian tenor singer and composer, 1837; Ronzi, Mlle. Joséphine, Italian cantatrice, 1831; Ronzi, Luigi, Italian pianist and composer, 1840; Ronzi, Stanislao, Italian violinist and comp., 1824.
Por se fosse pequena a saga dos Ronzi, García Armand (2013) dá extensas informações sobre Melchior Ronzi, mestre de dança, as quais revelam que a relação dos Ronzi com a Espanha foi um percurso de várias gerações tanto de músicos quanto de impressores e empresários. Um Ronzi era o diretor dos teatros em Madrid, na época em que começava a sua carreira o cantor Manuel García, por volta de 1802, ano em que abandona esse cargo (Radomski, 1999).
A partitura Buqué, para piano e violino ou flauta sobre motivos da ópera I Puritani de Bellini, foi editada ca. 1835 em Madrid pelos irmãos Ronzi, Basili e Bonoris, o qual revela uma evidente ligação entre os diversos italianos cantores, impressores e empresários a residirem em Madrid. Uma amostra desta partitura pode ver-se na Biblioteca Nacional de España, na cota Mp/5352/4.
Esta profusão de editores italianos lembra as relações entre editores franceses na partitura Sueño de Rosellen de Arcas que conserva o Arquivo Canuto Berea, a indicar vários grupos empresariais de edição musical caracterizados por uma origem nacional comum, e que poderá ser motivo doutro artigo. Nas coleções digitais da New York Public Library acha-se um retrato de Stanislao Ronzi, com o tratamento de Professeur de Chant.
A Biblioteca Nacional de España conserva quatro partituras de Estanislao [sic] Ronzi: 1. El curro marinero: canción, 1832? para voz e piano; 2. Barcarola en el drama Marino faliero Rossini, Gioachino (1792-1868), arr. piano Ronzi, 1832?, 3. Buqué musical para piano forte y violín o flauta, 1835?; 4. La Manola, 1850? para voz e piano. Desconfiamos de que todas essas obras sejam de Stanislao Ronzi, que em 1832 fazia 9 anos, sendo mais possível que fossem composições doutros membros da família, os quais assinavam com o mesmo apelido.
A sua música instrumental é puramente italiana, porém a vocal tenta imitar a canção popular em castelhano. Devido à estreita relação com Madrid, tanto musical quanto empresarial, é natural que os Ronzi tentassem publicar produtos de gosto local. A partitura para voz e piano conservada na BNE, El curro marinero (cota M.Reina/28(16)), figura como propriedade de F. Bonoris y Cía. com o número de prancha "F. 3 B." e, de seguido, a calcografia de B. Wirmbs.
A calcografia de Wirmbs coloca uma possível datação da partitura antes de 1834, último ano de atividade deste impressor. A respeito dos Bonoris, Pagán (2003, p. VI) localiza um editor Bonoris Zappen em Bolonha, na segunda metade do s. XVIII, dedicado à publicação de textos dramáticos de ópera.
Ainda sobre El curro marinero
No Fundo Valladares há no mínimo três canções com o mesmo título e letra: El curro marinero, de Sebastián Iradier, José Melchor Gomis e Stanislao Ronzi. A canção tem origem, possivelmente, no âmbito do teatro em castelhano no século XVIII, as tonadilhas e a música cénica. Comprovamos que a obra dos Valladares, que figura anónima, é a de Ronzi por comparação com a partitura do Arquivo Canuto Berea, onde sim aparece o nome do autor, datada em 1832 e posta para guitarra na tonalidade de Sol m. Esta é a mesma tonalidade que a da partitura editada por Bonoris e Wirmbs para voz e piano.
O acompanhamento da guitarra, na versão do Arquivo Canuto Berea, procura manter a mesma forma que o de piano de Bonoris e Wirmbs, tomando o movimento dos baixos da mão esquerda e adaptando a estrutura rítmica da mão direita. Contudo, tem diferenças que podem dever-se a uma adaptação diferente, não necessariamente publicada em partitura para voz, com as partes de piano e guitarra, como era comum na época.
A versão do Fundo Valladares é outra, está em Mi menor, no acompanhamento os baixos dirigem-se de maneira diferente e a sua combinação com os acordes também faz evidente que se trata doutra adaptação. A mudança de tonalidade teria servido para uma melhor adequação à voz de qualquer dos membros da família Valladares. Pois na família haveria o costume de adaptar a tessitura e os acompanhamentos das obras às necessidades de cada membro, ilustrando assim um cultivo sério e razoado da música de salão. Nas duas versões, a dos Valladares e a de Canuto Berea, o acompanhamento é simples e pensado para amadores poderem cantar e tocar ao mesmo tempo.
Sobre a letra da canção
A respeito da letra desta canção e as suas sequelas, consultamos um ilustrativo trabalho (Almanaque, 2014) onde se informa de uma notícia no Diario de Avisos de Madrid de 1833 a mencionar a subscrição de várias obras, entre elas El curro marinero. Uma outra notícia publicada no El correo de las damas, de Madrid, do 14 de novembro de 1835, onde a obra já aparece ligada ao compositor Ronzi. E, finalmente, o curioso comunicado publicado na Revista española em que se relata a polémica provocada pela interpretação desta obra de Ronzi.
Durante a década de 1830 circulam separadamente duas versões da letra desta canção, por um lado está a versão séria e, por outro, a picaresca ou satírica, como era próprio das tonadilhas castelhanas. A letra da canção de Ronzi conservada no Fundo Valladares é a picaresca. O altercado teria sido provocado pelo seu significado implícito, que bastou para organizar um problema que foi resolvido entre o auditório e as autoridades. Aqui deixamos a picaresca letra das canções contidas no Fundo Valladares e no Arquivo Canuto Berea:
Es mi curro marinero
y cuando sale a la mar
es tan solo en mi barquilla
donde suele navegar.
Los dos a la par bogamos
y la barca empieza a andar
ai ai ai ai
boga más currillo mio
que me empiezo a marear.
Ay que siento la congoja
de este maldito vaivén
mas no importa, curro mío,
a bogar vuelve otra vez.
Los dos boguemos a un tiempo
lleva, currillo, el compás:
boga bien, currillo mio
que me vuelvo a marear.
Mira, currillo, que temo
se levante un temporal;
más si quieres que sigamos
yo no me canso jamás;
ya estamos cerca del puerto
no pierdas curro el compás
despacito, curro mío
que me vuelvo a marear.
Bibliografia
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