Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaO médico guitarrista Luís Eugénio Santos Sequeiros (1909-2012)
Isabel Rei Samartim
Quando no ano letivo 2000-2001, Iago Santos Castroviejo, professor de Economia Aplicada da Universidade de Vigo, se inscreveu na Escola Municipal de Música de Cangas, não sabia que abria um caminho guitarrístico para toda a comunidade galega. Era o meu primeiro ano como professora em Cangas, depois de ter trabalhado os quatro anteriores no Conservatório Municipal das Pontes mais uns meses no Liceu de Vila João, e no início eu só vi um senhor com interesse em aprender a tocar guitarra.
Foi grande a surpresa quando me informou que o interesse radicava em que queria ganhar a técnica suficiente para aprender a tocar as obras do seu pai. Do seu pai? Que obras são essas? – perguntei. No dia a seguir, o Iago me presenteou o álbum para guitarra, editado pela família e intitulado Seis pezas para un neno que nace, com data de 1993, escrito pelo seu pai, Luís Eugénio
Naturalmente, acabei na casa do pai Luís Eugénio, quando ele ainda andava pelos 92 anos de idade, para lhe fazer uma entrevista e falar sobre as peças. Na altura, eu só era capaz de sentir uma imensa alegria por ter conhecido um guitarrista que, como meu irmão Francisco, fazia música galega e em galego para guitarra. O que passou nos vinte anos posteriores a esse facto bem o sabe a gente que me conhece. Nos últimos tempos, a tese A guitarra na Galiza tem sido um dos frutos desse processo de recuperação de guitarristas galeg@s.
Vida de Luís Eugénio Santos Sequeiros
Luís Eugénio Santos Sequeiros nascia na Póvoa do Caraminhal um 15 de março de 1909, filho de Eugénia Sequeiros Gonzalez (Vilela, Moanha, 1884 – Cangas/Madrid, 1974) e de António Santos Hermo (Póvoa do Caraminhal, 1866-1913). Houve mais quatro irmãos e irmãs Santos Sequeiros, além de Luís Eugénio: Josefina, Luísa, António e Jesus (“Luk-has”). Este último nasceu após a morte do pai, com a família já estabelecida em Cangas. Eugénia Sequeiros, depois de enviuvar, foi viver com a mãe e avó das cinco crianças, Amália Gonzalez Bermudez de Castro (1858-1943), que era uma virtuosa pianista.
Na vila de Cangas havia uma intensa atividade musical em que a família Sequeiros estava mergulhada. Luís Eugénio, com suas irmãs e irmãos, aprenderam música na casa da avó, Mamã Amália, entrementes estudavam na escola de Ângelo Mato. Para fazerem os exames oficiais pegavam num carro de cavalos que os levava ao Liceu da Ponte Vedra. Toda a família era grande amadora da música, onde o instrumento era o piano e o compositor preferido, Chopin.
Santos Sequeiros e a guitarra
A guitarra entrou na vida de Luís Eugénio ao ir estudar Medicina em Compostela. Era um instrumento portável, que lhe permitia integrar-se na vida estudantil compostelana e tinha um bom repertório clássico. Em Compostela parava no hostal na frente da Casa da Tróia, de que o médico e escritor Dario Álvarez Blazquez escrevera as crónicas intituladas La Casa de la Troya desde un cuarto piso, no Faro de Vigo, onde relatava a atividade dos estudantes:
Luis Eugenio Santos Sequeiros, que era de Cangas y prodiga hoy su generosidad en las tierras de la Padrenda orensana, me acompañaba muy bien con la guitarra. Ese sí que era bueno. Todo lo hacía bien menos jugar al dominó.
Santos Sequeiros participou até em três tunas durante a estadia como estudante em Compostela. Os anos 1928 e 1929 são de forte agitação política contra a ditadura de Primo de Rivera, quando Santos Sequeiros era admirador do professor e médico Roberto
Entre a música e os estudos houve também espaço na família para a moderna prática do desporto. Os irmãos Santos Sequeiros destacavam na área dos desportos náuticos: natação, canoagem, polo aquático, etc., chegando Luís Eugénio a ser treinador da equipa feminina de natação do Clube Rodeiramar, em Cangas.
Santos Sequeiros, médico de família
Em 1934, Luís Eugénio acabou a carreira de Medicina e teve o seu primeiro destino em Alpuente (Valência). Depois regressou à Galiza e trabalhou em Beluso (Bueu) até que em 1936 se desatou a Guerra da Espanha. Foi alistado para as fileiras franquistas como médico, inicialmente destinado no buque Almirante Cervera. Na guerra morrem seus irmãos António e Jesus. Ao acabar a guerra e instalar-se a ditadura, Santos Sequeiros é destinado a Marrocos, nas localidades de Azib de Midar e Tiztoutine, de onde retorna no ano 1942, quando ganha a vaga para Amieva (Astúrias).
Em 1945 casa-se em Compostela com Pilar Castroviejo Blanco-Ciceron (1914 – 2006), irmã da escritora Concha Castroviejo e do também escritor José Maria. Do matrimónio nasceriam nove filhas e filhos, que hoje conservam o seu legado vital, histórico e musical. O matrimónio morou em Astúrias, onde nasceram as três primeiras crianças: Conchita, Eugénio e Carme. Depois vai a Pedrafita do Cebreiro. Em Cangas nasce Pilar, e depois estabelecem-se em Padrenda (Ourense) por um total de 20 anos, entre 1950 e 1970 onde têm os restantes filhos e filhas: Nanina, Mercedes, Iago, Jesus e Rosário, esta última dedicada ao piano.
Em 1970 solicitou destino para Cangas, onde trabalhou e viveu até ao final da sua vida. Em 1980 aposentou-se e retomou a atividade musical dedicando-se intensamente à guitarra: a estudar o repertório clássico, especialmente a música de Tárrega que adorava, a realizar arranjos e composições próprias, sempre atento às atividades da Agrupação Guitarrística Galega de Vigo, e co-fundou um quarteto de plectro com os irmãos Barreiro e Angel Blanco. Morreu em Cangas em 24 de fevereiro de 2012, semanas antes de fazer os 103 anos de idade.
Atividade musical familiar
A avó, Amália Gonzalez Bermudez de Castro (1858-1943), virtuosa pianista cujo fortepiano da primeira metade do século XIX se conserva junto com bastantes partituras e alguns excelentes desenhos, sabia francês e costumava tocar piano para @s net@s no fim do dia. Era irmã de João Bermudez de Castro, professor de inglês na Escola de Comércio de Vigo e flautista. Casou com Eugénio Sequeiros, médico da Ilha de São Simão. A filha, mãe de Luís Eugénio, Eugénia Sequeiros, também tocava piano.
Luís Eugénio Santos Sequeiros, ou LESS como ele gostava de assinar, era assíduo dos concertos de todo o tipo, a sua educação musical aprendida já desde a infância levava-o tanto a desfrutar dos eventos programados quanto a participar neles como regente e intérprete do quarteto de plectro. Também eram imprescindíveis os arranjos para a educação musical dos seus filhos e filhas, para @s que preparava canções com acompanhamento de guitarra e piano: Cânones, vilancicos, baladas galegas eram cantadas em família durante a longa estadia no lugar da Notária, em Padrenda. Tangos, fados e música clássica eram também interpretados em Cangas, com os filhos mais novos que formaram um grupo: Iago na bandurra, Jesus na guitarra e Rosário no alaúde, dirigidos pela guitarra do pai.
A coleção de música que se conserva inclui uma boa quantidade de partituras para piano dos séculos XIX e XX, conformada por várias gerações de pianistas e outros familiares músicos, em que se acham aproximadamente umas 150 obras, entre peças e arranjos para guitarra e orquestra de plectro, dentro dum conjunto de umas 500 obras para vários instrumentos que ainda aguarda a sua catalogação formal. O irmão de Luís Eugénio, Jesus, “Luk-has”, também compôs umas obras para piano de grande beleza que foram igualmente editadas pela família. Esta estimação de obras está feita com base nos catálogos familiares e nas sucessivas visitas minhas realizadas na última década. Hoje, parte da coleção conserva-se no Conservatório e Escola Municipal de Música de Cangas.
A música para guitarra de Santos Sequeiros
O legado compositivo de Luís Eugénio Santos Sequeiros contém algumas das páginas mais belas de música para guitarra dos fundos galegos. O espetacular Trémolo dedicado à filha primogénita Conchita e o Fado, incluídos no CD Guitarra Galega Vol. 1, são duas amostras tanto da fantasia romântica do guitarrista quanto da pegada que o mestre Tárrega deixava na sua inspiração. Mas também as Seis peças para um neno que nasce (Cangas, 1993), a conterem a letra que pode ser cantada junto com a interpretação guitarrística, o arranjo do conhecido intermédio da zarzuela A lenda do Beijo de Reveriano Soutulho, o da bela canção Um suspiro de Canuto Berea, e o resto das suas obras desprendem o mesmo feitiço saudoso de harmonias tonais e sabor popular.
No seu repertório estava também o elenco de compositores clássicos como Bach, Mozart, Haydn, Beethoven, Schubert, Mendelssohn, Wagner, Strauss, Schumann, Gounod, Tchaikovski, Toselli, Chopin, Granados, Albéniz, Grieg, Aranguren, Soutulho, e os guitarristas Sors, Carcassi, Arcas, Ferrer, Cimadevila, Damas, Tárrega, Sáinz de la Maza, Fortea, Moreno Torroba, José Tomás, Brouwer, além de compositores galegos como Montes, Veiga, Chané, Paz Carbajal, German Lago, Henrique Carballo, Jesus Gonzalez e Ramon Pazo.
Era costume de Santos Sequeiros escrever a música em notação moderna e em tablatura numérica ao mesmo tempo, para facilitar a leitura e a dedilhação quando estas viravam espinhosas ou havia várias possibilidades de execução. Também fazia numerosos arranjos das obras adaptadas para quarteto, trio ou guitarra solista, em diversas tonalidades, sempre com uma escrita pulcra e mantendo a tablatura na linha inferior à notação moderna.
As cartas com arranjos musicais para os filhos, a biblioteca e a partitoteca na casa de Cangas, a afeição ao piano e à guitarra, o fortepiano da avó, a guitarra Hijos de Tatay, os poemas e acrósticos dedicados à família fazem do médico Luís Eugénio Santos Sequeiros um músico completo, do estilo do pontevedrês Javier Pintos Fonseca, do qual seria contemporâneo por quase três décadas até à morte de Pintos em 1935.
A atividade musical da família Santos Castroviejo, em especial a do petrúcio Santos Sequeiros continuou assim os hábitos musicais e a tradição guitarrística do século XIX, e a introduziu no complicado século XX. LESS estava na linha de conservar as belezas musicais galegas do tardo-romanticismo, como também aconteceu ao guitarrista Xosé Chas Garcia (1908-1947) (Franqueira, 2015) e aos agrupamentos de plectro com guitarras que se constituíram e atuaram ao longo do século XX. A fantasia musical e a longa vida de Luís Eugénio Santos Sequeiros também nos deixou obras formosíssimas da sua autoria e um regueiro de saudosas lembranças nos seus descendentes.
Referências bibliográficas
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